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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, May 31, 2005

"Nua e Crua" de Marta Gautier (Dom Quixote)


Marta Gautier é licenciada em Psicologia e divide a sua actividade profissional pelo ensino, pela psicoterapia e, claro, pela escrita.
O seu último romance é composto por um aglomerado de episódios, cronologicamente ordenados – que são, por vezes, intercalados por alguns capítulos acerca de uma misteriosa e sedutora mulher, Bia, da qual só mais lá para o final do romance é que nos apercebemos de que forma a sua existência se relaciona com a da protagonista – Marina, uma jovem marcada por uma infância “pobre em afectos”, o que explica a sua extrema insegurança na vida adulta.

Vida essa que é caracterizada por uma série de conflitos intrapessoais e interpessoais e pela necessidade compulsiva de conquistar a sua própria autonomia sem ferir ninguém – um conflito do tipo atracção-repulsão, despoletado pela necessidade se ser amada e admirada por todos.

Principalmente pela tia Manuela, sua mãe adoptiva e mentora.

De outra forma, o seu crescimento pessoal jamais se efectuará sem que antes Marina corte radicalmente com o seu passado, já no final da adolescência.

Marina não consegue relacionar-se com os outros sem fazer tudo por tudo para lhes ser agradável, no sentido de colmatar as suas carências afectivas. Daí recorrer, constantemente à manipulação, que resulta numa necessidade compulsiva de colocar uma máscara diferente consoante as ocasiões ou o papel a desempenhar.

A dada altura, o seu verdadeiro EU está soterrado debaixo de uma personalidade fictícia, que todos amam, mas que ninguém conhece verdadeiramente.

Os afectos tornam-se superficiais e a sensação de solidão aumenta. O equilíbrio emocional de Marina e dos que lhes estão próximos está à beira da ruptura…

É necessária a reconciliação com o passado. A resolução dos conflitos pendentes impõe-se, apesar dos esforços titânicos de Marina em mantê-los trancados nos arquivos poeirentos da memória.

A perda de identidade, a importância das raízes e as consequências despoletadas pelo estilo de afectividade e educação ao longo da infância, são as linhas de desenvolvimento deste romance, de pendor tão realista, que nos é dado pela pena de Marta Gautier.

Uma escritora que, à semelhança de Alberto Moravia em Agostinho, disseca as atitudes nas suas diferentes componentes: cognitiva, emocional e comportamental.

Mas, ao contrário do escritor italiano, a tónica do discurso narrativo de Marta Gautier em Nua e Crua está isenta de qualquer forma de pessimismo ou depressão.

Nos capítulos relativos a Marina, a narrativa decorre na primeira pessoa e é notório o contraste entre o tom equilibrado presente da protagonista e narradora com as atitudes do passado, contraditórias e incoerentes para os que com ela convivem.

Nos capítulos que relatam o quotidiano de Bia, o narrador coloca-se na posição de observador, como se estivesse no cinema ou no teatro. A história passa a ser contada na terceira pessoa. Como se o narrador dos restantes capítulos "saísse de si mesmo", despersonalizando-se, tirando a máscara, para falar do alter-ego de Marina.

Também a ênfase no desenvolvimento psicossexual, tão ao gosto de Moravia, é aqui dividida e atenuada por outras dimensões do desenvolvimento pessoal de Marina: a dimensão psicossocial de cariz erikssoniano e a visão construtivista\cognitivista de Jean Piaget.

Por último, Nua e Crua, é um livro extraordinariamente bem escrito, por aliar um solidíssimo saber técnico a uma apurada sensibilidade e poder de observação.

Esperamos, por isso, pelo próximo romance de Marta Gautier.

Ansiosamente.



Cláudia de Sousa Dias

Monday, May 30, 2005

“Pompeii” de Robert Harris (Bertrand)


Pompeia, 79 D.C., Reinado do Imperador Tito Vespasiano.

Attilius, o aquarius, é o engenheiro das águas, o funcionário imperial encarregue de zelar pelo bom funcionamento do Acqua Augusta – o principal aqueduto romano que abastece as principais cidades da Península Itálica, incluindo as da famosa Baía de Nápoles, dominada pelo Vesúvio.

Mas uma anomalia ocorrida entre Pompeia e Nola deixa todas as cidades, a partir desse ponto, sem água. Geram-se tumultos. Também o aquarius, que cuidava do aqueduto, antes de Attilius, desaparece misteriosamente.

Cabe a Attilius levar a cabo a dupla missão de reparar a avaria, depois de identificar o problema e descobrir o que aconteceu ao siciliano Exomnius, o anterior aquarius.

À medida que prossegue nas suas investigações, auxiliado pelo impressionante conhecimento científico do Almirante Plinius – o célebre naturalista romano, autor da mais famosa enciclopédia da Antiguidade, a Naturalis Historia –, o engenheiro das águas apercebe-se de toda uma série de fenómenos naturais estranhos para a época, que o vulgo de então chamava de presságios: a presença de enxofre na água, nascentes que recuam, o solo que incha, mar chão…

…e acaba por perceber, já depois de reparada a avaria, que a falta de água é apenas uma pequena parte do verdadeiro problema: o Vesúvio, tal como o Etna na Sicília, é mais uma morada de Vulcano, o deus do fogo. Que parece estar prestes a explodir de cólera (problemas com a esposa Afrodite, nascida das águas?).

Preocupado, Attilius avisa as autoridades de Pompeia, que o ignoram e fazem tudo para que o facto não seja divulgado. O engenheiro descobre, então, todo um esquema de corrupção que permite a alguns oportunistas o enriquecimento fácil graças a situações como esta. Estes necrófagos do comércio e das finanças não estão dispostos a abdicar de mais uma oportunidade de aumentar as suas, já de si, gordíssimas, nutridíssimas fortunas. Os interesses económicos falam mais alto do que a necessidade de tomar providências para salvar o maior número de vidas possível.

A tragédia abate-se sobre Pompeia e Herculanum.

“Pompeii” é um romance técnico interessante, sobretudo para quem gosta das questões da Geologia – principalmente para sismólogos e vulcanólogos – que são descritas com precisão.

O Autor exibe um saber técnico impressionante.

Por outro lado, o leitor leigo nestas questões é amplamente auxiliado pelas epígrafes no início de cada capítulo, que lhe dão a explicação técnica daquilo que se vai passar, fornecendo pistas para interpretar os fenómenos ao mesmo tempo que a personagem principal e, por vezes, permitindo mesmo antecipar-se-lhe. Estas mesmas epígrafes são retiradas de obras especializadas em vulcanologia e mostram o quanto a bibliografia utilizada pelo Autor para elaborar a obra é significativa.

O Fogo e a Água são os elementos que dominam a obra. É graças ao equilíbrio \ desequilíbrio entre estas duas forças que se processa a dinâmica do desenvolvimento do romance. Attilius é também o responsável pela qualidade da água que percorre o Acqua Augusta, a mesma água da qual depende a sobrevivência de Attilius e da sua amada a uma tragédia desta dimensão.

Um romance cujo objectivo é a transmissão de conhecimento e ao qual é adicionada uma pitada de intriga policial e um toque de paixão, intriga, poder e corrupção (para catalisar o apetite do leitor, como não podia deixar de ser).

As personagens são quase todas planas apresentando, cada uma delas, uma virtude ou um defeito que se mantém ao longo da trama: a integridade e o rigor no trabalho de Attilius; a coragem de Corelia; a corrupção, a venalidade e a vulgaridade, de Ampliatus (pai de Corelia, o equivalente ao Trimalchion de Petronio no seu “Satyricon”); a fraqueza de Popidius; a malícia de Corax; a fidelidade de Polites; o saber e a lealdade de Plinius, que incarna as virtudes da antiga república romana…

Mas a personagem principal é o Vesúvio, cujo comportamento se altera ao longo da trama, originando o quebra-cabeças que Attilius e seus aliados têm de resolver.

“Pompeii” é um livro que fala de uma das mais comentadas catástrofes naturais ao longo de toda a história da humanidade (comparada apenas ao Dilúvio no Génesis bíblico ou ao Tsunami de 6 de Janeiro último).

E também do impressionante nível de evolução tecnológica no que se refere às obras de engenharia de uma civilização que, há dois mil anos atrás, segundo Trevor Hodge, construiu uma obra que “abastecia a cidade de Roma com substancialmente mais água do que aquela que era fornecida em 1985 à cidade de Nova Iorque”.

Um trabalho impressionante dos nossos antepassados romanos.

Contudo, insuficiente para impedir a tragédia.

Porque os deuses fazem sempre questão que nos lembremos que somos apenas homens.

Cláudia de Sousa Dias

Saturday, May 28, 2005

“Agostinho” de Alberto Moravia (Ulisseia)


A extrema sensibilidade de Alberto Moravia manifesta-se, em “Agostinho”, através do olhar de um adolescente. Agostinho está a sair da fase que Sigmund Freud apelida de “lactência” – período que medeia entre os seis e os doze anos e durante o qual os instintos sexuais estão como que adormecidos - e a entrar na fase genital, altura em que começa a ter os primeiros impulsos sexuais tal como se manifestam ao longo da idade adulta.

Moravia descreve, com altíssimo grau de precisão, toda a turbulência emocional do adolescente, dissecando emoções e explicando-as de forma a ficarmos com o mapa exacto das motivações que estão por trás das atitudes desta personagem.

O olhar da criança transforma-se, gradualmente, pela progressiva tomada de consciência acerca da sexualidade da própria mãe. Esta tomada de consciência é, simultaneamente, despoletada pela maledicência do seu grupo de pares - os amigos que encontra na rua - e pela crescente pulsão sexual que ocupa cada vez mais espaço no seu Eu interior obrigando-o a reparar na beleza e sensualidade maternas.

O complexo de Édipo e a influência de Freud, o pai da psicanálise, é mais do que evidente na escrita de Moravia.

À vaidade em ser o centro das atenções pela companhia de uma mulher bela (a presença magnífica da mãe, uma atraente viúva na plenitude da sua sensualidade) sucede-se a culpa pela dualidade de sentimentos e necessidade compulsiva de isolar ambas as facetas da mãe em compartimentos estanques. Isto faz com que tente direccionar a sua recente sexualidade genital para outro objecto sexual alternativo. Este é o principal objectivo de Agostinho, que irá orientar as suas atitudes ao longo da história, bem como a necessidade crescente de compreender-se a si próprio e aos que o rodeiam.

Outra vertente deste conto (que alguns autores preferem classificar de novela, apesar de Agostinho ser uma personagem mutável) é a socialização secundária de Agostinho que ocorre dentro do seu grupo de pares: os filhos dos banheiros e pescadores que encontra na praia, próxima da estância balnear, onde está a passar as férias de Verão em companhia da mãe.

Apesar das diferenças sociais, os elementos do grupo revelam-se essenciais para o seu amadurecimento.

A posição de Agostinho no grupo é periférica, devido não só à idade e constituição física frágil, mas também pelo facto de ser tão diferente dos restantes elementos. Essa mesma fragilidade e diferença são, simultaneamente, a sua fraqueza e a sua força. Agostinho conserva sempre alguma independência na sua forma de pensar, relativamente aos restantes elementos. Apesar de, para ele, a integração e necessidade de ser aceite, admirado e respeitado pelos outros ser fundamental. Para ser aceite é necessário, por vezes, contrariar comportamentos anteriormente adquiridos como, por exemplo, a forma de vestir ou o horário de chegar a casa.

E é no grupo que a ingenuidade de Agostinho começa a desaparecer. Este toma contacto com as implicações dos rumores, sofre as consequências directas da propagação dos boatos e apercebe-se que nem todos os adultos protegem as crianças. É no grupo que toma consciência de que há formas de paternalismo que escondem a tirania e o abuso sexual debaixo de uma máscara pseudo-protectora.

É, também através do grupo que o protagonista tentará proceder ao rito iniciático que irá marcar a sua entrada na idade adulta: a ida ao bordel.

As restantes personagens – ao contrário de Agostinho que é uma personagem modelada ou redonda (isto é, que sofre um devir ao longo da história) – são planas, mantendo as suas atitudes constantes ao longo da história.

“Agostinho” é um livro introspectivo que fala, sobretudo, das dores do crescimento e da transformação e desenvolvimento interpessoal.

Morávia, um dos grandes génios da literatura italiana do século XX descreve esse processo como ninguém, apesar da sua visão pessimista da realidade.

Este é um livro imperdível, para os amantes da boa literatura.

Belo, sensível e inteligente.

À imagem do EU do seu Autor.



Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, May 25, 2005

“Dentada em orelha de Cão” de Miguel Carvalho (Campo das Letras)


Este livro reúne crónicas/reportagens de Miguel Carvalho, jornalista na revista “Visão”, efectuadas ao longo dos últimos sete anos.

São crónicas de viagens cujo objectivo é dar voz àqueles que têm mais dificuldade em fazer-se ouvir.

São reportagens acerca de vidas que poderiam ser o ponto de partida para um ou vários romances históricos.

Trata-se de um livro elaborado no terreno das emoções de uma realidade concreta de gente que sofre as consequências directas e indirectas dos actos de quem faz a História. E que é, por isso,” uma dentada em orelha de cão”. Um animal que, atacado pela raiva, crava os dentes na carne humana dilacerando-a. O homem-cão, o homem lobo do homem, que devora o próprio semelhante e, para o qual, os fins justificam os meios.

Desta forma, através da janela de um táxi, atravessamos juntamente com Miguel Carvalho a fronteira grega com a Albânia e mergulhamos num mundo diferente: um país que tenta recuperar de uma ditadura pretensamente de esquerda que, ao longo de quarenta anos, transformou a Albânia no país mais pobre da Europa. Um país sob liberdade condicionada.
Miguel Carvalho foca os aspectos culturais, económicos e políticos pela janela de um táxi. As imagens desfilam diante dos olhos do narrador, como se de um filme se tratasse, com o motorista como cicerone. A beleza da paisagem natural contrasta violentamente com o cenário caótico nos centros urbanos. O discurso de Miguel Carvalho é forte, marcado por uma ironia mordaz, quando evidencia o oportunismo político dos demagogos, dos pseudo-democratas e o seu discurso camaleónico, assim como a rapacidade das máfias locais e a sua eficácia extrema na construção de toda uma economia paralela.


Um aspecto curioso é a importação cultural de terras de Vera Cruz: música, novelas, a tradução das obras de Jorge Amado.

A despedida deixa um sabor agridoce a saudade antecipada e uma amizade que permanece.



Na Guiné Bissau, em Janeiro de 2000, dois anos depois da revolta que culminou cm o exílio de Nino Vieira e a tomada de posse por Koumba Yala, Miguel mostra-nos o país mergulhado numa pobreza franciscana onde predomina a “cultura do empréstimo” e do “desenrasque” a par de um sentimento de solidariedade impossível de se encontrar na Europa ou restantes países considerados desenvolvidos. Excepto quando se sobe demasiada mente e demasiado depressa. A ridícula “snobery” de um novo rico é, infelizmente universal.

Um país rico em recursos naturais, mas paupérrimo em infra-estruturas.
O comodismo e a inércia da classe dirigente impedem-na de implementar todo um conjunto de medidas necessárias ao desenvolvimento do potencial de um povo inteligente e sociável.

Outro aspecto focado é a luta pela igualdade dos direitos das mulheres na Guiné Bissau.
Estas começam já a dar os primeiros passos em direcção à autonomia económica, mas há ainda muito por fazer…fica a esperança e a confiança na força do próprio trabalho e criatividade…

As crónicas de Miguel Carvalho sobre o País Basco é um dos capítulos da obra mais bem concebidos por ser um tema “quente” , o qual exige um trabalho de precisão idêntico ao de um perito em desminagem. E Miguel consegue-o. No País Basco, o nível de vida é excelente, quase equivalente ao dos países escandinavos, o que proporciona um notório contaste com o restante território espanhol.

Miguel Carvalho mostra, as duas faces da moeda na questão Basca: de um lado, estão os constrangimentos relativamente à liberdade de pensamento e de expressão quanto às questões políticas; do outro lado, está a relativa manipulação dos media pelo Governo espanhol que, segundo o Autor, imprime uma grande dose de exagero em relação ao clima de insegurança no País Basco. Um tema no qual só se pode mexer com pinças devido às nuances nele contidas e à dificuldade de estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de autodeterminação de um povo e do combate ao terrorismo.

Em suma, para os bascos, os fins sãos legítimos, mas os meios nem por isso.

No texto introdutório ao capítulo da Venezuela, está sintetizado, aquilo que é debatido e dissecado ao pormenor ao longo das oitenta páginas seguintes. Este capítulo lê-se como quem vê um documentário.

Nelas vemos que, a uma ditadura que servia apenas os interesses de uma oligarquia – no tempo dos caciques ou dos caudilhos - , sucede um governo de esquerda inspirado em Simon Bolívar ou Che Guevara.

Além das sanções económicas dos EUA ao governo liderado por Hugo Chávez, que pretende que os lucros da exploração das reservas de petróleo revertam a favor do país e do desenvolvimento das infra-estruturas (e proporcionar à população o acesso a necessidades tão básicas como a saúde, alimentação, instrução, electricidade, etc.), o povo venezuelano sofre, ainda, o desprezo de uma élite que estudou em Harvard (ou qualquer outra universidade americana) e, deslumbrados com a cultura dos gringos, desdenham tudo o que é tipicamente Venezuelano.
A crítica de Miguel Carvalho é impiedosamente mordaz, excepto quando fala dos mais desfavorecidos dos esquecidos pela Deusa Fortuna. Torna-se, então, descritivo sem utilizar muito a adjectivação para manter a objectividade. Fala na terceira pessoa e recorre à transcrição dos diálogos com os seus entrevistados (faz, aliás, o mesmo com o presidente Hugo Chávez e com mulher a loira que é o braço armado do presidente).

Anteriormente ao regime de Chávez, o ministro da informação era escolhido pelos grandes empresários porque dele dependiam muitos dos apoios ao estado. Como os tempos mudaram, assiste-se ao boicote dos empresários ao Governo utilizando para isso, segundo o Presidente, os canais privados.

Na entrevista dada pelo Presidente ao autor deste livro, percebe-se um governo que quer incentivar à mudança, mas que tem pontos débeis. Chávez excede-se, por vezes, na linguagem. Não é um retórico, ao contrário de Berisha o pseudo-democrata da Albânia.

Mas é imbatível no que toca à montagem de toda uma estratégia de marketing e promoção da sua auto-imagem. Aquilo a que Miguel Carvalho chama de “um novo conceito de demagogia crioula”. Com um pouco de despotismo à mistura. Na entrevista, é perceptível que o poder começa, gradualmente a transformar a personalidade do estadista, quando este afirma começar a ter a necessidade de ser mais calculista, quando se trata de controlar a voz da oposição.

Já na recta final deste capítulo, Miguel Carvalho apresenta-nos uma crónica relativa à actividade de um livreiro de ascendência lusa, que dá ao leitor a panorâmica geral da transformação das estruturas económicas, sociais e culturais despoletadas pela mudança do regime político. Trata-se de um texto em que o discurso do narrador tem um pendor literário e uma tonalidade poética mais acentuados. Começando logo pelo título, inspirado na biografia de Gabriel García Márquez – “Viver para contá-la”.

A última parte é dedicada ao nosso próprio país que pode ser um paraíso de paz (para um refugiado da guerra do Iraque) ou um inferno de pobreza (para os nativos que habitam aos bairros sociais dos nossos centros urbanos), no qual todas as portas de acesso ao bem-estar e à qualidade de vida se fecham ou o caminho para lá chegar é demasiado íngreme para ser escalado.

Uma ferida que os cravos vermelhos não conseguiram sanar.
Expô-la aos olhos de todos através deste livro servirá, talvez, para identificar o problema, EMBRIONÁRIO MAS REAL – a perda da fé na democracia.

E quiçá, despertar a vontade política para solucioná-lo.

Fica lançado o desafio.


Cláudia de Sousa Dias

Monday, May 09, 2005

“O Cruzado” de Michael Alexander Eisner (Replicação)


Francisco é o único herdeiro dos Calatrava, uma das maiores fortunas da nobreza espanhola no séc. XIII, durante o reinado de Jaime II de Aragão. Muito afeiçoado ao irmão mais velho, Sergio, o jovem não aceita a sua morte.

Crente que Sergio se encontra algures no limiar entre o céu e o inferno, ingressa numa cruzada – na qual participa D.Fernando, o corrupto filho bastardo do rei - , com o objectivo de “libertar” a alma do irmão,decide colocar a própria vida ao serviço de uma causa cristã: a expulsão dos Mouros da Cidade Santa.

É, no entanto, defraudado pelos acontecimentos. O desfecho da guerra pela libertação de Jerusalém do domínio dos mouros não é o esperado e, quando Francisco regressa à sua terra, a sua sanidade mental e desgaste físico chocam todos aqueles que o amam.

Ironicamente é Francisco quem, no mundo dos vivos, vagueia à deriva na fronteira infernal entre a realidade e a loucura, assombrado por fantasmas e demónios…

Os religiosos, na época os médicos do espírito, diagnosticam-lhe possessão demoníaca e recomendam-no a um famoso exorcista: o Padre Adelmo.

Os métodos do padre Adelmo são eficazes.

Praticamente todas as almas se salvam depois de passarem pelas suas mãos.

Apesar de quase nenhuma sobreviver aos tratamentos…

Mas há uma alternativa.

O Irmão Vial, ex-soldado e ex-homem mundano, juntamente com o seu aprendiz – o irmão Lucas, prior do mosteiro de Santes Creus e amigo pessoal de Francisco -, tem um método muito pouco ortodoxo de exorcismo, que consiste em conversar e acalmar o possesso, tentando reconstituir o mapa da sua alma e apanhar o fio condutor que o desviou da realidade.

O caminho para a cura é como um labirinto de Creta que, sem o “fio de Ariadne”, composto pelas memórias do doente, seria impossível de encontrar.

Na Idade Média, o desconhecimento da Psicologia era total – esta só se constituiu como ciência a partir do séc XIX, altura em que se separou da Filosofia – muitas das neuroses e psicoses que então afectavam os seres humanos (personalidade múltipla, esquizofrenia, psicoses somáticas, paranóias, distúrbio bipolar, etc.) eram facilmente confundidas com possessão demoníaca. Daí recorrer-se à figura do exorcista que teria a função de “expulsar” esses mesmos demónios da pessoa afectada usando, para isso, na maior parte das vezes, métodos assaz violentos.

Consequentemente, o facto de surgir um exorcista com a metodologia de um irmão Vial ou de um irmão Lucas, com um método alternativo tão brando quanto eficaz, seria considerado, no mínimo, suspeito para não dizer revolucionário ou mesmo subversivo.

De facto, tomando como exemplo o caso de Francisco de Calatrava – o protagonista da história - , a sua morte seria útil a muita gente. Francisco sabe demasiado acerca daquilo que se passou no Oriente. Além disso, a sua apetecível fortuna é amplamente cobiçada…

Francisco é uma personagem que, se fosse real, e não a projecção da personalidade do Autor, seria a de uma pessoa bastante atípica no universo da nobreza espanhola do séc. XIII. Sensível, introspectivo e culto é, em contrapartida, um espírito rebelde, muitas vezes inconveniente, mais assertivo e até um pouco táctico, do que agressivo – como, por exemplo, quando prepara uma armadilha de forma a que o Abade do mosteiro seja apanhado na despensa em flagrante delito enquanto abusava sexualmente de uma adolescente.

Esta rebeldia, aliada a um carácter melancólico, faz com que Francisco, ainda antes de partir para a cruzada, se aproxime da bela, altiva e misteriosa Isabel, sua prima e alma-gémea, com a qual estabelece total empatia. Isabel tem a capacidade única de trazer Francisco de volta à realidade – antes e depois da fatídica cruzada.

Andrés, irmão de Isabel, primo de Francisco e seu principal aliado, é um jovem equilibrado, íntegro, com um sentido de humor e pragmatismo que, regra geral, trazem Francisco de volta à terra, embora de uma forma menos assertiva que Isabel. O seu espírito de aventura e desejo de fama e glória farão dele o companheiro de armas ideal para Francisco durante a guerra. Um verdadeiro Aquiles medieval.

O já referido Irmão Lucas, Prior do mosteiro de Santes Creus, antigo colega de Francisco, no tempo em que este esteve em reclusão no mosteiro, é um homem de origem humilde, ambicioso porém equilibrado, a ponto de a sua integridade superar os seus interesses. É nele que o reputado Irmão Vial delega a missão de cuidar de Francisco e elaborar o mapa da sua alma para escapar à tortura do sinistro padre Adelmo que o aguarda no caso de o irmão Lucas falhar.

O irmão Vial, exorcista muito pouco ortodoxo, é o mentor do irmão Lucas que, ao curar Francisco, encontra o caminho para a sua própria alma. Vial é extremamente corajoso, justo, racional, analítico e, sobretudo, incorruptível. Sendo aquele que orienta e dirige a conduta de Lucas – o principal adjuvante do protagonista – é uma personagem importantíssima para o desenvolvimento da história por ser a antítese total do vilão. Lucas é mais frágil porque os seus valores, só no final são totalmente consolidados. O que é fundamental já que é ele – Lucas – o narrador encarregue de transcrever e comentar as confissões de Francisco.

D.Fernando é o principal oponente de Francisco, filho bastardo do Rei, um homem venal, ambicioso, deseja o poder a todo e qualquer preço; assassino, sanguinário, um homem para o qual os fins justificam todos os meios.

A narrativa desenvolve-se dentro do estilo típico do romance histórico ao longo da qual o autor exprime os valores pelos quais tenta orientar a sua conduta: o respeito pela vida humana, a camaradagem entre os companheiros de guerra; a rebeldia e a insubmissão face a todas as atitudes prepotentes e a toda e qualquer espécie de abuso de poder, à corrupção, traduzindo-se no elogio à denúncia de qualquer acto de cobardia ou de violação dos direitos humanos.

Os capítulos que envolvem as actividades bélicas e as manobras tácticas são, talvez, um pouco longos, tornando o ritmo da história, por vezes, um pouco cansativo pelo facto de o leitor ver-se, desta forma, um pouco privado do contacto com as personagens mais interessantes, como por exemplo, Lucas ou a própria Isabel.

Em contrapartida, o capítulo passado na prisão infecta da cidadela de Acre é notável pela precisão e verosimilhança com que Eisner reconstrói um campo de refugiados ou de prisioneiros de guerra modernos, fazendo lembrar uma versão denotativa logo, mais imediata de “O ensaio sobre a Cegueira de José Saramago.

Uma promessa no universo da literatura norte americana.

Com um toque de rebeldia face à mentalidade dominante.

Uma picada de mosquito.

Conseguirá irritar a Besta-Fera?



Cláudia de Sousa Dias