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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Friday, July 28, 2006

"A Sombra do Vento" de Carlos Ruiz de Zafón (Dom Quixote)


“Uma história de livros malditos, do homem que os escreveu, de uma personagem que se escapou das páginas de um romance para o queimar, de uma traição e de uma amizade perdida (...) amor, ódio e sonhos que vivem na sombra do vento”.

Carlos Ruiz de Zafón in A Sombra do Vento

Este é um dos raros casos em que o sucesso editorial e a rendição incondicional do público a um autor pouco conhecido em Portugal pelo grande público, coincide com a opinião favorável da crítica especializada e dos gourmets da palavra.

Romance vencedor do prémio “Correntes da Escrita” para o ano de 2005 - evento realizado anualmente na Póvoa de Varzim - A Sombra do Vento é um livro cuja qualidade foi aclamada unanimemente pela crítica especializada, à escala nacional e internacional.

Um dos principais atractivos do referido romance é o facto de a trama remeter para vários outros autores, clássicos e contemporâneos.

Trata-se de um enredo que envolve uma complexa e absorvente teoria da conspiração, em pleno governo do Ditador Franco, onde se misturam os ingredientes que, invariavelmente, conferem ao romance a compulsividade obsessiva necessária para prender o leitor como um íman até ao último parágrafo: amor, ódio, paixão, traição e vingança.

Tudo isto com a bela, imponente e brumosa Barcelona de há sessenta anos atrás como cenário.

A arquitectura da trama envolve um grupo restrito de coleccionadores de livros raros e um autor-mistério, cujas obras parecem ser alvo de um perseguidor anónimo, encarregue de as fazer desaparecer.
O autor perseguido tem o sugestivo nome de Julián Carax e a sua última obra é especialmente visada pelo vingador desconhecido cujo título é...

...A Sombra do Vento.

Mais: o romance de Carlos Ruiz de Zafón debruça-se, nem mais nem menos, sobre a magia que os livros exercem na alma humana, aludindo a toda uma plêiade de autores mais do que consagrados. Por exemplo, por um lado lado, a biblioteca chamada de “o cemitério dos livros esquecidos” remete para Arturo Pérez-Reverte e o seu best-seller intitulado de O Cemitério dos Barcos sem Nome; há, por outro lado, uma intertextualidade com Umberto Eco em O Nome da Rosa, devido à labiríntica configuração da biblioteca descrita na Abadia - onde William Baskerville vai, em plena época medieval, desempenhar o papel de Sherlock Holmes – e a de Barcelona, cujo guardião Isaac faz lembrar vagamente o antigo bibliotecário do romance do autor piemontês.
Em ambos os casos, é na biblioteca que se encontra a chave mestra que possibilita o desvendar da trama.

A influência de Alexandre Dumas também está presente na construção de uma teoria da conspiração que em nada fica a dever à de O Conde de Monte Cristo. O mesmo se pode dizer em relação a Gaston Leroux e Michael Ondaatje pela semelhança de Laín Coubert - o perseguidor de A Sombra do Vento de Carax - cuja movimentação na sombra e deformidade física trazem, respectivamente, reminiscências de O Fantasma da Ópera e O Paciente Inglês.

A intertextualidades continuam com o tema da solidão interior de algumas das personagens, como a tradutora Nuria Monfort, o jornalista filantropo Miquel, a bela Clara Barceló – aprisionada dentro da sua limitação física –, Sophie Carax, mãe de Julián e, claro o próprio protagonista, Carax, nem mais nem menos – e a forma como o autor inicia o romance. Estas duas características fazem-nos lembrar imediatamente as circunstâncias e a primeira frase com que García Márquez inicia o seu célebre Cem Anos de Solidão: a visita de Daniel ao Cemitério dos livros esquecidos pela mão do pai, tal como o pai de José Arcadio Buendía quando leva o filho a ver o gelo pela primeira vez.

Voltando ao tema da solidão e prosseguindo a analogia com García Márquez, a maior parte das personagens sofre dessa mesma solidão asfixiante. Mas, no caso de A Sombra do Vento, a solidão das personagens deve-se a uma auto ou hetero-censura que as impede de darem largas às suas emoções e viverem os afectos mais profundos na sua plenitude.
A interdição do amor, numa sociedade onde impera a falta de liberdade, o autoritarismo e a ambição desmedida, só é interrompida pelo jovem Daniel quando este se esquece de si próprio e se dedica altruisticamente a uma causa – o desvendar do mistério do fracasso editorial do autor de A Sombra do Vento - contando com a ajuda do ex-espião Fermín Romero de Torres. Daniel e Fermín escapam à maldição dessa mesma solidão, numa primeira fase, refugiando-se nos livros e na sedução hipnótica que estes provocam na alma humana e, posteriormente, no amor. Beatriz resgata o jovem protagonista de um amor não correspondido e possibilita ao autor Carax um juste de contas com o passado. Por seu lado, a companheira de Fermín - ex-empregada da loja do pai de Daniel - dedica-se integralmente ao namorado trazendo-lhe maior estabilidade e normalidade à sua vida de filme de intriga internacional. Trata-se de um quarteto composto por personagens atípicas em relação aos outros intervenientes do romance. Daniel, pela sua candura e fidelidade aos seus ideais de Verdade, Justiça e Amor; Bea, pelo seu magnetismo, inteligência e personalidade solar – uma mulher fatal, mas só na aparência, em tudo semelhante a Veronica Lake ou Rita Hayworth; Fermín, pelo seu humor cáustico e um pouco escabroso, fidelidade e afecto caninos em relação a Daniel e um sentimento algo condescendente mas tenaz para com a namorada, uma alma simples e rude mas com um coração de manteiga.

Fermín é uma das personagens mais interessantes do romance, não só pela capacidade crítica que demonstra face a alguns acontecimentos políticos e sociais da época, mas principalmente pela astúcia que sabe usar de uma forma positiva.

Ao contrário do grande vilão do romance - o sinistro inspector Fumero - que, no entender de Miquel, o jornalista, é possuidor de “uma alma de aranha” e não consegue deixar de odiar, vivendo, para a concretização da sua vingança.

A originalidade de Zafón está, sobretudo, na peculiar emotividade de uma escrita, dotada de uma profundidade pungente, manifesta na qualidade das imagens, metáforas, comparações e sinestesias utilizadas”, “... a ausência da minha mãe era para mim ainda uma miragem, um silêncio gritante que até então não tinha aprendido a emudecer com palavras”, “o coração batia-me no peito como se a alma quisesse abrir caminho e desatar a correr pelas escadas abaixo” ou “...olhos envenenados de lágrimas” ou ainda “...um céu incendiado de nódoas negras”.

As descrições das personagens são eloquentes e de uma impressionante exactidão evocativa, devido à atribuição de características normalmente associadas a outros seres vivos não humanos ou objectos inanimados, por exemplo, “um homenzinho com traços de ave de rapina”.

O cenário onde a trama atinge o seu climax – uma velha casa em ruínas onde, no passado, ocorreu a tragédia – remete para a atmosfera lúgubre dos romances góticos, cujo objectivo é o de aumentar o suspense ou a sensação de adrenalina nos leitores.

O romance inicia e termina exactamente da mesma forma. A cena repete-se, mas ocorre em gerações diferentes. O objectivo é mostrar que a evolução da mentalidade humana não é linear mas cíclica, de cariz pitagórico, onde o início é o fim e o fim é o início, com mais uma visita ao cemitério dos livros esquecidos. Pretende, também, mostrar a continuidade dos ideais e objectivos de vida de Daniel, que se repercutem nas gerações futuras, num lugar onde a alma de escritores e poetas está sepultada pela eternidade, mas que revive sempre que um leitor curioso, os arranca e ao seu pensamento, palavras e emoções do reino das sombras, para enriquecer o espírito das gerações vindouras.

Um cemitério de imortalidade.

Porque “os livros são espelhos, só se vê neles o que uma pessoa tem por dentro" – através do mecanismo de projecção. Ler torna-se, no entender de Bea, uma arte, um ritual íntimo que está a morrer lentamente e que “...ao ler aplicamos a mente e a alma e estes são bens cada vez mais escassos”.

O final é uma nota de esperança no futuro e o saldar de contas com o passado. Por tudo isto, A Sombra do Vento é um livro que consegue converter as almas mais avessas à leitura. Suceptível de cativar os espíritos mais renitentes.

Um estrondoso sucesso de qualidade estética, narrativa e ideológica inquestionável.

Mais do que apelativo.

Sedutor. Misterioso.

Envolvente como os tentáculos de um polvo.


Cláudia de Sousa Dias

Friday, July 14, 2006

“Contos do Mal Errante” de Maria Gabriela Llansol (Assírio e& Alvim)


Não se pode dizer que estejamos perante uma colectânea de contos ou pequenas estórias propriamente dita, mas antes diante de um conjunto de narrativas, ou segundo Manuel Gusmão, de fragmentos interligados.

Segundo MG, o autor do posfácio do livro, a obra pode ser classificada entre a narrativa e o romance, onde os capítulos descontínuos formam uma espécie de caos organizado.
São cento e dez fragmentos por onde deambula o pensamento errante, especulativo, tal qual um andarilho à procura da regra. Segundo o mesmo Autor, “os segmentos verbais que iniciam cada fragmento anunciam o tema ou seleccionam o acontecimento principal de cada texto”, constituindo uma espécie de costura que une os fragmentos e dá continuidade ao descontínuo.

A escrita fragmentária de Maria Gabriela Llansol é, sobretudo, de carácter introspectivo cuja finalidade é a de dar a voz a uma mulher culta, de inteligência muito acima da média e uma sensibilidade fora do comum para a época, que pretende legar o seu pensamento para a posteridade: Isabôl ou Isabel, nada mais nada menos que a lendária rainha Santa Isabel de Portugal, exilada na cidade de Münster.

Trata-se, obviamente, de uma obra de ficção, uma fábula, composta por personagens históricas, que a audácia da Autora relaciona de uma maneira invulgar, formando um triângulo amoroso. Que é a consagração de uma união física e mística ou espiritual: Isabôl ou Isabel é amante de Copérnico – o herético – e de uma beguina holandesa denominada Hadjewich, que viveu na primeira metade do século XIII e dedicou grande parte da sua vida a escrever poesia sacra.

O objectivo da escrita de Isabôl é a análise da génese do Mal, melhor dizendo, em que consiste - a ontologia do Mal – e de onde provém – a gnosiologia - , o eterno enigma genesíaco.

Conjuntamente com Copérnico e Hadjewich, Isabôl tenta, isolada pelas neves numa mansão situada nos arredores de Münster formando uma barreira natural contra a cidade sitiada, estudar o eterno dualismo e luta de contrários presentes na alma humana: o bem e o mal, a luz e as trevas, o caos e o cosmos. O frio e o gelo convidam ao isolamento e ao amor no aconchego do lar, aquecido pelo fogo da lareira e da paixão, numa luta inglória face à morte e ao esquecimento.

O dilema de Isabôl está em saber se a origem do mal está no amor ou no conhecimento. As sua reflexões levam-na a concluir que a infelicidade ou a tristeza provém do não conhecimento, logo a alegria é identificada com a sophia ou sabedoria.

Por outro lado, ao explorar o dualismo do amor ímpar – onde entra um terceiro elemento que forma uma tríade mulher-homem-mulher, Isabôl explora a dualidade sexual do seu ego: o seu lado masculino expresso no desejo de possuir um pénis para melhor desempenhar a sua dupla função sexual, masculina e feminina.

Isabôl, no auge da ânsia do seu gozo sensual, manifesta esse mesmo desejo, de teor freudiano, que caracteriza a bipolaridade das suas pulsões sexuais: “todo o animal humano tem um chifre na testa, ou seja um falo”.


Daqui emerge um conceito de cosmologia proveniente da necessidade de ligar, da atracção mútua dos corpos, formando a tríade – o símbolo da perfeição.

A dualidade da alma de Isabôl está patente nesta sua ambivalência sexual e permite-lhe formar um triângulo com os outros dois elementos no plano sexual, intelectual e místico. Copérnico funciona como elemento de ligação entre Hadjewich e Isabôl, ou a hipotenusa do triângulo humano cujos lados são compostos pelas duas mulheres – as duas faces do mesmo caminho.

A crise no amor ímpar é despoletada por Hadjewich quando esta decide afastar-se das emoções terrenas e dedicar-se apenas ao aprofundamento espiritual. A bela holandesa torna-se, então, objecto das emoções negativas de Isabôl: ressentimento, mágoa e algum ódio que é desviado para uma estranha figura do imaginário medieval – Potropato, um estranho ser híbrido, metade ave, metade equídeo –, que facilita a Isabôl a passagem da realidade do quotidiano para o mundo onírico, oferecendo-lhe a possibilidade de viajar pelo espaço sem, no entanto, sair da mansão.

Potropato representa o mundo da imaginação e do sonho da narradora, o fantástico, a esperança e a experiência; aponta para os novos mundos e, claro, para o momento de crise no amor ímpar, devido à sua chegada estar associada à partida de Hadjewich. Potropato simboliza a mudança.

O número ímpar é, segundo Manuel Gusmão, aquele que mantém os seres abertos ao conhecimento e, por isso, comparável a um curto-circuito de energia. O número três personifica, assim, a intensificação de uma energia quebrada pela partida de um dos elementos.

O mesmo curto-circuito não acontece no mecanismo repetitivo das oposições binárias, onde o dinamismo da síntese e da criação de algo de novo não se verifica.

As quatro personagens principais estão relacionadas com os quatro elementos. Hadjewich está conotada com a Água – um elemento que pode ser tanto de ligação como de cisão ou separação – uma vez que esta personagem desempenha, ao longo da narrativa, ambos os papéis.
As duas mulheres são sôfregas da alegria do conhecimento. Mas enquanto que Hadjewich representa a ânsia pela alegria do género contemplativo – com a quietude e serenidade de um rio ou lago gelado –, Isabôl encarna a sofreguidão pela alegria associada ao júbilo de possuir. Por este motivo, Isabôl representa o elemento Fogo, o ardor sensual, o poder de acumular calor e exalar frieza. Porque o gelo também queima. E é esta a razão pela qual as duas mulheres se atraem e, posteriormente, se repelem em diferentes momentos da narrativa.

Porque Hadjewich vive um conflito gerado pelo desejo carnal e a sua sede de auto conhecimento relativo à esfera espiritual é inesgotável. O que se traduz numa necessidade imperiosa de explorar os seus impulsos sensuais para melhor analisar e desenvolver as faculdades do espírito levando-a, num segundo momento da narrativa, a renegar os desejos do próprio corpo, para procurar, no deserto, “as formas mais puras”.

“Receio pertencer-vos
e que me pertençais
a mim, porque tenho
medo de vós, e medo
de mim”.

A tríade ou unidade sistémica que era constituída pelas partes que se interligavam através de forças recíprocas, é interrompida atiçando o fogo do ódio de Isabôl. A alma de Hadjewich é conotada com a frieza da água gelada ou com o gelo propriamente dito uma vez que esta oculta as emoções, permanecendo este aspecto da sua personalidade encoberto nas profundezas das massas geladas (note-se aqui a influência de Freud e da teoria do inconsciente no imaginário da Autora) aparecendo, à primeira vista, fugaz ou volátil.

Hadjewich age solitariamente, como se os restantes intervenientes não fossem humanos mas deuses que devem obediência um ente superior.
Hadjewich torna-se no núcleo de um amor absoluto, que acaba por dar origem ao desamor ou “atracção de repelir”, segundo as palavras de Isabôl.

Já Potropato é conotado com o Ar, o elemento associado à mentalidade e ao vento. Potropato ajuda Isabôl a evocar o país de origem, o sonho, a memória. O facto de a sua chegada coincidir com a partida de Hadjewich, faz convergir o ódio de Isabôl para si. Por fim, Copérnico pode ser identificado com o elemento Terra, associado ao poder e à estabilidade – “Copérnico esconde o seu poder (conhecimento científico) num estojo fechado”.

Voltando ao cerne da questão – a origem e o devir do mal – Isabôl tenta especular se este provirá do amor ou do conhecimento. Do corpo ou do espírito.
Desta reflexão ela extrai várias ilações.

A primeira é a de que o mal é o excluído do ciúme, a inveja. Será, portanto, esta a pedra angular do processo, ficando a descoberta do corpo que se desconhece como o segundo desfolhamento do espírito, ou seja, o amor sensual como o caminho para o auto-conhecimento e crescimento interior.

A segunda é a de que há um certo maniqueísmo a propósito da simbologia da pomba na cidade de Münster – o lado bom e o lado mau, o construtivo e o destrutivo, o cosmos e o caos. A dualidade da alma humana.

Em terceiro lugar, para Isabôl, “no amor não há juízo final, mas fora dele não terão conta as contas que nos serão pedidas” logo: no amor não há lugar para a maldade quando as motivações pessoais estão voltadas para o bem-estar do Outro.

Quarto, a alma humana e a cidade são o espaço onde se movimentam duas forças opostas: o amor e o ódio. A fragilidade deste jogo de forças, provém quer da falta de habilidade quer de rectidão interior. Ambas as circunstâncias levam, muitas vezes, a danos irreparáveis numa relação.

Quinto, a manifestação da beleza gera o amor (o bem) e o ciúme (o mal). Hadjewich é bela mas devido à falta de discernimento torna-se objecto de ódio de Isabôl. Esta identifica a bela holandesa com as freiras que reprimem a sexualidade “deixando-se seduzir pela tábua rasa do espírito” e que se convencem ver nas trevas a ilusão da verdade.

Em sexto lugar, a reunião de forças, tal como acontece em Münster e em todas as situações de guerra, acelera o mal.

Em sétimo lugar, outra das fontes de onde provém o mal “são os pensamentos dos outros que originam os nossos preconceitos”.

Para Isabôl existem três formas fundamentais de exercício de poder:
a) A atracção dos corpos, em que o móbil mais fraco é atraído pelo mais forte.
b) A influência mágica, na qual um ser inexperiente é subjugado por outro mais hábil.
c) A degustação hipnótica, em que a serpente da fábula de Esopo aniquila a vontade de uma ave, atraindo-a às suas mandíbulas.

Segundo ela, existem ainda três formas de vida e de medo (sempre o número da tríade, da unidade perfeita, que contém em si as partes e o todo) e a consciência da dependência relativa entre os seres depende de saber ou não modular o olhar segundo as três imagens do poder que vimos anteriormente. No fundo trata-se das diferentes formas de manipulação. Isto é: o ser humano sofre a influência moral e sugestiva proveniente dos outros seres mais confiantes.
Contudo, nenhum poder humano é absoluto e, para Isabôl, “a própria serpente há-de morrer, provavelmente, devorada. Há uma certa afinidade com o pensamento de Platão, quando afirma que só o Divisor – Deus, a forma suprema – pode separar o que está unido pela mesma forma. Hadjewich usurpa, de certa forma este papel agindo como o divisor, abandonando os amantes e regressando ao deserto para se encontrar a si mesma. Hadjewich constrói uma imagem antropofágica do casal ao qual está unida.

Por sua vez, Isabôl é capaz de abandonar Hadjewich pela escrita e Copérnico de fazer o mesmo pela ciência.

O pensamento de Isabôl é profundamente herético pois, ao contrariar os desígnios do divisor – separar escolher os seus aliados e eliminar os adversários, Isabôl tenta fazer a reunião, a síntese dos contrários. Para ela, o Divisor (a religião?) é a máscara da fome e da falta de amor.
Quanto ao ambiente da vizinha cidade de Münster, este exprime, em termos sociais, aquilo que se passa a nível individual na mansão. O povo revolta-se contra o tirano Jan de Leyde, revolta essa que é violentamente reprimida.

Em Contos do Mal errante, podemos vislumbrar a génese do iluminismo, na primeira metade do século XIII, a partir da cosmologia de Copérnico, transposta para as relações humanas, pela pena de Isabôl. O iluminar da mente, da consciência, provém do desejo de morder a maçã da sabedoria, da fome de conhecimento e, nas classes mais humildes, de alimento e melhores condições de vida. O desejo, considerado então herético, de utilização do conhecimento e engenho para atingir a elevação material e espiritual é reprimido pelo Poder. E a heresia está em que, na época, esta posição colide com a ordem social estabelecida, que considerava o sistema de divisão social em três estados – clero, nobreza e povo ou terceiro estado – como legitimada pela divindade – a teoria da predestinação. Para Isabôl o povo precisaria não de milagres mas de palavras e obras. No fundo, é a postura de Isabel de Portugal enquanto rainha. Enquanto isso, povo sofre a opressão de um poder que conduzirá ao abismo do não poder – à anarquia. Isabôl assiste às consequências da vertigem do poder absoluto na cidade de Münster: a perseguição dos amantes da liberdade que Maria Gabriela Llansol traduz numa das mais belas frases de toda a narrativa. “a noite caiu num estado de vigília que agitou de insónia e de luzes, a cidade”.

Jan de Leyde, o rei perverso, manda executar crianças que traficam os livros indexados no mercado negro. Estas retiram-nos sub-repticiamente da fogueira para ganharem algum dinheiro acabando, assim, por preservar a memória do passado e o conhecimento para a posteridade.
Face aos princípios sanguinários de Jand de Leyde, a atitude do bando das crianças-ladrões, leva à preservação dos arquivos da memória e, ao salvar os livros da destruição, acabam também por preservar a imortalidade dos seus autores.

O legado de Copérnico e Isabôl, apesar de herético, tenciona ser uma obra de esperança e luz sobre o processo de construção do Homem. Um processo que conduz à laicização – na perspectiva da Autora, onde se nota a influência de Nietzsche ( para que a paz sobrevenha é necessário que se proceda à morte de Deus) - , do homem e do iluminar da consciência.

O final traduz-se num rito de união da tríade perfeita, simbolizando a síntese dos contrários como fim da História da Humanidade – um paraíso de tolerância e harmonia.

Um livro para os verdadeiros apaixonados da literatura.
E da beleza da escrita.
E da audácia do acto criativo.
A coragem de desafiar preconceitos e convenções.

Cláudia de Sousa Dias