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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, August 21, 2006

“Pó d’Enraizamento” (crónicas) de Luísa Monteiro (Edigarbe)

A reunião das cinquenta melhores crónicas de Luísa Monteiro, publicadas na imprensa Algarvia ao longo do ano de 2002, retiradas da secção Tartan do diário Notícias do Algarve, da rubrica Caminhos de Fogo do Magazine do Algarve e de Fanuel no semanário A Avezinha.
Um livro que é uma ilustração viva do poder que emana das palavras e de, por obra delas, dotar a uma escritora nascida no Minho de criar raízes no Algarve.
A qualidade literária justifica, por si só, a sua referência neste blog, e em todo e qualquer lugar onde se fale de literatura portuguesa contemporânea.

A obra divide-se em três partes: as Aguarelas, os Tigres e as Tangerinas. As primeiras são, segundo o jornalista e autor do prefácio da obra, Arménio Aleluia Martins, as crónicas de carácter mais “intimista”; já os Tigres falam da selva da sociedade e das contradições resultantes da hegemonia do poder económico, em detrimento dos valores mais humanistas onde o tom predominantemente descritivo das Aguarelas é substituído pela crítica feroz e denunciadora das flatulências poluidoras do sistema social; enquanto que em Tangerinas, a Autora dá largas à sua veia ensaística e criativa. Trata-se, contudo, de uma distinção que não é estanque, já que, por exemplo, a primeira das Aguarelas tem muitas das características das Tangerinas e vice-versa.

Dentro dos três géneros de crónicas de Luísa Monteiro presentes nesta obra, encontramos algumas que são verdadeiros contos que poderiam ser integrados num volume à parte ou, à semelhança do que aconteceu no romance A Guardadora de Gansos, fazerem parte do imaginário criativo de uma personagem, tornando-se um produto que emana de um heterónimo da Autora.

As oito "aguarelas" são dotadas de uma beleza lírica à qual se alia o estilo literário audaz a que Luísa Monteiro já nos habituou. Uma invulgar associação de estímulos sensoriais que, juntamente com uma profusão de recursos de estilo, tece uma tapeçaria literária, ou melhor, uma aguarela de palavras, resultando numa extraordinária composição final.

A "aguarela" denominada Pão com Nardos um conto de Natal de excepcional beleza e conteúdo muito pouco ortodoxo, a fazer lembrar o ponto de vista de Dan Brown em O Código DaVinci ou o Messias terreno de A última Tentação de Cristo do grego Kazantzakis....

A temática de Aguarelas prossegue com a tecitura de um quadro que ilustra a exploração da mão-de-obra vinda do Leste, uma imagem que em muito se assemelha ao mercado de escravos romano.

Depois vem a homenagem a Leonardo DaVinci, pelo aniversário da sua morte, onde se exalta o geocentrismo como sendo a pedra basilar para a edificação de uma nova ordem social.
Segue-se uma exploração antropológica sobre a origem e evolução das comemorações de Sto. António.
A rotina de um jornalista na região Algarvia também tem lugar nesta secção, assim como a homenagem ao génio de Fernando Pessoa. A insubordinação do génio criativo como insurreição contra a morte.
É lembrada, ainda, Madre Teresa de Calcutá, cuja grandeza reside no altruísmo na sua forma mais pura, em oposição ao materialismo que grassa à nossa volta. A propósito dos actos de terrorismo na Tchechénia lança um olhar sobre os motivos que levam uma jovem a cometer suicídio e, simultaneamente, a provocar um holocausto em nome de um país, por sinal, situado na Europa.

Já na segunda parte da obra, intitulada Tigres, a tonalidade da escrita abandona um pouco a nostalgia e o romantismo de Aguarelas, adquirindo um discurso mais enérgico e denunciador – o rugido de um tigre fêmea.

O objectivo é denunciar algumas contradições presentes na nossa cultura ou modus vivendi. O protagonismo cabe, por exemplo, ao grau de importância que é concedido a determinadas actividades culturais pelas entidades (in)competentes, assim como o feminismo e a feminilidade ou melhor, a preservação da identidade feminina. O direito da mulher à audácia e à perseguição dos próprios sonhos é uma das bandeiras defendidas pela Autora.

Em Tigres fala-se, ainda, de religião e de xenofobia, aproveitando para efectuar uma incursão nos conflitos religiosos ao longo da História – na sequência do pedido de perdão de João Paulo II ao povo Judeu, por crimes perpetrados no passado pela Igreja Católica contra a Humanidade - ,da independência de Timor e da polémica do ouro nazi nos cofres de estado portugueses.

Destaca-se o brilhantismo do discurso que preconiza a procura da união dos povos e da unidade do conhecimento em A Costela de Percival, onde se fala da divisão da Humanidade e da incapacidade de entendimento entre os povos por imperativos dos donos do poder, aludindo ao atentado do 11 de Setembro; dos ódios ancestrais quase tão velhos quanto a humanidade.
Os rugidos continuam com a chamada de atenção para a falta de destaque concedida à obra de Júlio Dantas, dramaturgo vilipendiado pelo poeta Almada Negreiros no seu Manifesto Anti-Dantas.
Procede-se a uma breve análise política, versando sobre as probabilidades de sucessão dos diferentes candidatos ao trono de Pedro, tendo em conta os interesses económicos e políticos das principais potências do mundo ocidental.

Fala-se ainda de corrupção, materialismo e descrédito face aos ideais que têm por fundamento a moral kantiana: a acreditar na mentalidade dominante, esta parece estar obsoleta. A “utopia do Mal” parece emergir como resultado da anomia, presente nas sociedades urbanizadas e motivada por um individualismo levado ao extremo.

Em Tigres, também se disserta sobre a auto-censura da imprensa regional ou local, que muitas vezes cede a pressões dos anunciantes furtando-se, quer à sua verdadeira missão – informar – quer ao seu direito mais fundamental: a liberdade de expressão. Luísa Monteiro aponta o dedo face à falta de verdadeiro jornalismo de investigação a nível local e ao predomínio de notícias que apenas visam manter o status quo.

É também abordada a evolução da sociedade portuguesa em termos materiais e de valores, vinte e oito anos após a Revolução dos Cravos.

É focado, também, o aspecto da destituição das funções educativa e formativa da família.
No aspecto religioso, é posta em causa, à semelhança de Thomas Mann em José e seus Irmãos, a autenticidade dos Evangelhos e outros textos bíblicos, assim como as inúmeras deturpações provenientes de sucessivas traduções e reedições ao longo de vários milénios.
A Autora Salienta o facto de a evolução da Humanidade não ser apenas feita de progresso, físico ou intelectual, mas também de retrocessos ou involução.

Os rugidos sobem de tom com o lançamento do anátema a Jean-Marie Le Pen pela pretensão deste ao associar a sua imagem a Joana D’Arc quando, na realidade, foram personagens como ele que contribuíram para o julgamento da jovem por traição à pátria e bruxaria.

Segue-se uma fábula canina personificada para ilustrar a violação dos direitos dos animais, Humanos e não só, na Coreia aquando do Mundial de Futebol em 2002.

É ainda explorada a diferença de mentalidades entre orientais e ocidentais, baseada em arquétipos opostos, utilizando uma analogia baseada no comportamento animal.
Fala-se de trocas de elementos culturais ou interculturalismo a propósito de budistas de sapatilhas e ocidentais praticantes de modalidades desportivas como Yoga, Tai-chi ou Pilates.

Luísa Monteiro prossegue a sua cruzada com uma análise crítica sobre história a cooperação/rivalidade económica entre as regiões da Andaluzia e do Algarve, mergulhando nas suas raízes e consequente evolução histórica das respectivas relações diplomáticas.

A Autora mostra o seu desalento ao colocar em evidência a ineficácia relativa à constituição de associações de carácter cultural, por inércia da população.
Critica ainda o convencionalismo quanto à elaboração de um texto literário e à rejeição por parte das editoras, de autores que rompam com a norma estabelecida. Identifica-se sobretudo com uma frase de Adriana Calcanhoto “Eu não gosto do bom-gosto”. Por que gostos não se discutem.

À semelhança de Eça de Queirós, Luísa Monteiro, insurge-se contra a macrocefalia de um país que privilegia tudo o que vem da capital, referindo-se ao jornalismo massificado e sensacionalista de alguns canais televisivos.

Seguindo o rasto da denúncia da iliteracia, do mau funcionamento de algumas editoras que sucumbem à pressão dos lobbies, Luísa Monteiro aponta o dedo à urgência em colocar o país a ler num processo que só pode ser dinâmico. O que implica a necessidade de ser-se tolerante com os parâmetros que delimitam a fronteira entre aquilo que está estabelecido entre literatura maior e literatura menor. Porque, no entender da Autora, escritores, poetas, ensaístas são aqueles que mantém a identidade cultural de um povo – “…quem escreve não faz ciência, mas aprofunda o conceito de humanidade”. É, sobretudo, impiedosa para com a pobreza cultural das produções televisivas, principalmente em relação às “novelas da vida real” que implica a estupidificação das massas.

O tom crítico suaviza-se ligeiramente, inclinando-se para a sátira, com ao mencionar a indignação dos habitantes de Albufeira face aos decibéis provocados por um galinácio dotado de pulmões a la Pavarotti que arruínam com os sensíveis ouvidos dos cidadãos algarvios, impedindo-os de conciliarem o sono, estranhando não acontecer o mesmo com o barulho vindo das discotecas nas proximidades.
O último “tigre” é um elogio à atribuição do Prémio Nobel a Imre Kertézs e a Jimmy Carter. Trata-se, mais uma vez, da exaltação do altruísmo e da perseguição dos interesses globais em detrimento dos individuais.

Segue-se a secção composta por dezanove sumarentas Tangerinas, onde a denúncia e a crítica social cedem, definitivamente, lugar ao estilo literário mais puro e à análise social efectuada ao mais alto nível. Trata-se de uma prosa onde as todas as palavras são como ouro fino, minuciosamente trabalhado em delicadíssima filigrana.

A linguagem, fortemente polissémica, deixa ao cuidado do leitor a tarefa de decifrar o seu significado. Que é único e pessoal, consoante as referências impressas na memória de cada leitor.
Destaca-se O apocalipse das crianças, que trata da morte do sonho e da inexistência da infância pela ausência de estímulo à imaginação. Uma forma extremamente poética de descrever um genocídio infantil.

Em O Retratista dos Narcisos Amarelos é utilizado um ritmo alucinante combinado com a rima, numa prosa poética que se lê à velocidade de um cometa, aliado a uma série de trocadilhos que conferem a este mini conto toda a riqueza e encanto que já nos habituamos a encontrar na escrita de LM. Um retratista mentiroso que ilude as crianças fazendo-as procurar o passarinho que se esconde na máquina fotográfica do mês das mentiras.

Com A poltrona do Piolhinho, a Autora explora o objectivo dos contos tradicionais, num acto de rebeldia face à moral instituída e à educação pela punição. Uma crónica de pendor ensaístico, a revelar anos de pesquisa e o inesgotável manancial do vastíssimo universo literário da Autora. A terminar com a parábola do anãozinho, introduzida no romance intitulado O Evangelho das Rãs.

O Arrieiro da Primavera foca o duro trabalho da pesca, que termina com um belíssima metáfora: “Quanto menos malandro, mais o pão é traiçoeiro”. Ou seja, quanto mais duro o trabalho, pior a remuneração.

Segue-se mais um trabalho de ensaio – deambulações literárias a propósito da comemoração do Dia Mundial do Livro.

A “tangerina” seguinte é um conto/crónica que fala de liberdade de expressão e sexual, a propósito do amor de um tipógrafo anarquista.

A solidão dos pirilampos refere-se aos poetas que brilham num universo de trevas. Aqui está presente mais uma intertextualidade com Adriana Calcanhoto, referente à forma como se faz e classifica a literatura. Trata-se, mais uma vez, de normalização e de colocar a literatura num “quadrado”. É mencionada a marginalização dos poetas que rompem com a norma pré-estabelecida, ao mesmo tempo que se chama a atenção para a liberdade de expressão na Escrita como forma de Arte. E para aqueles Autores que não escrevem para as massas. Luísa Monteiro refere, ainda, que “o suicídio está para os poetas como a morte está para os pirilampos; é longe da luz brilhante da ribalta que se pode criar em liberdade”.
O sumo agridoce de Tangerinas continua a jorrar num texto de belíssimo teor literário sobre as artes cénicas.

Depois, vem o hino à Amizade, numa reflexão sobre as diferentes fases do ciclo de vida, a propósito do aniversário de Arménio Aleluia Martins, jornalista e director do semanário A Avezinha. Uma crónica impregnada de aromas e sabores a festa.

Nas entranhas de um tigre de papel discute-se, mais uma vez, a arte da Escrita e do exercício da liberdade de escrever.
Faz-se, em seguida, uma analogia acerca da estrutura psíquica das mulheres e dos lobos, a propósito de uma mulher excepcional: Diamantina Negrão. Freira, escritora e artista plástica. Uma mulher fora do seu tempo e espaço, à semelhança de Virgínia Woolf.

As lágrimas verdes da Mensagem é um dos textos mais ousados da Autora, relativo ao génio dos poetas malditos e daquela temática revolucionária que quase que se pode chamar de escrita luciferina. Um texto provocador, que subverte o pensamento, fazendo-nos lembrar Karl Popper, Thomas Kühn ou Friedrich Nietzsche.

Na crónica seguinte, a qualidade de vida durante o período de férias das pessoas que passam pelo Algarve no Verão é observada do ponto de vista antropológico em O Silêncio aquoso das noites azuis.

Saltamos, em seguida, para a análise sociológica, pela detecção das tendências face à evolução das preferências literárias dos jovens nas últimas décadas.

Passamos a uma crónica de carácter emotivo, introspectivo, que aborda a nostalgia que afecta os seres humanos após a voragem passional do Estio, num texto que fala, mais uma vez, de mulheres de excepção e de um amante fatal inspirado em Camilo Castelo Branco. E depois, o regresso ao início do ciclo. O fim que marca um eterno recomeçar. O eterno reflexo de cariz pitagórico ao útero maternal. Embrional. Setembrional.

Segue-se um texto de uma prosa inteiramente feminina, à semelhança do que acontece na escrita ficcional e até nas crónicas mais intimistas da Autora. Uma irresistivelmente sedutora Canção de Outono, de inigualável riqueza estilística, englobando sinestesias, metáforas, imagens e ousadíssimas comparações.

Novembro chega com os Crisântemos Azuis do Dia dos Fiéis e o primeiro contacto com a realidade da Morte e do Inverno, a lembrar o mito de Perséfone e Deméter.

A última "tangerina" é uma análise a duas castas opostas no nosso sistema social: a dos políticos e a dos intelectuais. A Autora chega à conclusão que os dois extremos se aproximam pela tentação de agir apenas e só com o objectivo de agradar às massas.

Ou seja caem na demagogia, o contrário ao ideal preconizado na democracia dourada de Péricles.

Ou na Academia de Platão.

Onde Luísa brilharia como merece, apesar das restrições às quais as mulheres estariam sujeitas na época.

Afinal, segundo a lenda, Athena também frequentou a Universidade…


Cláudia de Sousa Dias

Thursday, August 10, 2006

“pescadores de estrelas” de Helena Malheiro (Oficina do Livro)


O título deste segundo livro de contos de Helena Malheiro remete, imediatamente, para o mundo do sonho e da fantasia. A própria capa faz lembrar uma praia de areia azul safira polvilhada de micro diamantes. Uma paisagem de Neptuno ou Urano. Ou de um planeta de uma outra galáxia qualquer.

A candura e a simplicidade das estórias de pescadores de estrelas contrasta com os desconcertantes finais dos contos de O Tamanho do Mundo. Por outro lado, a emotividade é o tema central da maior parte dos contos de pescadores de estrelas onde a repetição anafórica de alguns parágrafos chave, marca a cisão espaço temporal, a fronteira entre a realidade e o sonho, entre passado e presente ou mesmo a própria fragmentação do Eu.

A qualidade estética sobressai em textos como Máscara, cuja epígrafe descreve o universo emocional em que está mergulhada a obra.

“Cansei de tirar a máscara
Às múltiplas faces da noite.
Segurem-me.
Tenho por vezes a tentação
De encher eu a noite de máscaras.”

A noite simboliza o sonho, a fantasia, as inclinações naturais ou os impulsos para fazer aquilo que mais se gosta. Uma tendência que é limada pelo processo de socialização – a aprendizagem do comportamento segundo os padrões da sociedade em que vivemos, isto é, de acordo com as regras que orientam a conduta dos adultos – e pela necessidade de sobrevivência, que implica uma estratégia de adaptação ao convívio com o Outro. Daqui nasce a obrigatoriedade de ocultar esse mesmos impulsos atrás da máscara do socialmente correcto ou da submissão à vontade do Outro, pelo recalcamento da vontade e pelos desejos do Mesmo. A máscara é a despersonalização ou o cobrir da nossa primitiva persona (máscara) com outra que não é a original, mas uma versão adaptada do Eu.

E deixamos de ser nós para passarmos a ser aquilo que os outros esperam de nós. As estrelas apagam-se e mergulhamos na escuridão opressiva da realidade.

Em Máscara, a fronteira entre o sonho e essa mesma realidade esbate-se, assim como a distinção entre o Eu e o Outro.

A pessoa que está sentada à lareira a beber chá, enquanto sonha com um cavalo negro a galopar por uma floresta sombria, é a mesma que bate à porta da cabana. A linguagem utilizada é codificada, onírica e, a construção da trama, faz lembrar um quadro surrealista. O cavalo negro simboliza a sensualidade da personagem que está sentada à lareira; a floresta e as árvores são os obstáculos à concretização dos objectivos. O facto de, nem a cavaleira nem a espectadora que bebe chá em frente à lareira conseguirem abrir a porta, exprime o medo de olhar para dentro de si, por um lado, e de enfrentar os próprios desejos e superar os obstáculos, pelo outro. A porta pode, também, simbolizar a fragmentação do Eu.

A Queda de Pompeia é uma estória de contrastes. É composta por duas narrativas paralelas a partir da mesma data, 24 de Agosto, que marca a célebre erupção do Vesúvio que arrasou com as cidades de Pompeia e Herculanum. Ambas as situações são desenvolvidas em alternância, fazendo com que passado e presente se aproximem e, simultaneamente, se afastem. A mesma data marca dois momentos históricos diferentes: no presente, Clara vive uma situação de desamor na Lisboa do início do século XXI; em Pompeia, no ano de 79 d.c., Lívia procura desesperadamente o seu amante, pressentindo a aproximação de uma catástrofe. O mesmo calor opressivo está presente como pano de fundo em ambas as narrativas. Estas personificam as duas faces do amor – uma positiva e outra negativa. O eterno e o efémero. O finito e o infinito. O saudável e o insano. O contraste está patente até na oposição da descrição física das duas personagens femininas – Lívia e Clara. A primeira, morena de olhar verde; a outra, loira de olhos castanhos.

O calor da tarde, que aumenta com o passar das horas em vez de diminuir é, só por si, um indício de tragédia, um factor climático que faz aumentar a tensão das personagens e o suspense do próprio leitor.

A lava do Vesúvio, que imortaliza os amantes em Nápoles, preservando o seu amor para a eternidade, assemelha-se ao vomitar da lava negra composta pela torrente de palavras cáusticas que marcam o fim do amor de Clara e Nuno, no tempo presente.

Pescadores de estrelas, a estória que dá o título à obra, inspira-se na frase retirada de O Principezinho de Antoine Saint-Exupéry.

“se calhar as estrelas só estão iluminadas para que, um dia, cada um de nós possa encontrar a sua”.

A candura e a beleza deste texto reflectem-se nas atitudes do pequeno grupo de crianças que, à noite, passeiam com canas de pesca viradas para o céu, à procura de estrelas que possam apanhar. Um texto que, por si só, faz com que valha a pena comprar o livro. Ao mergulhar no mundo perfeito dos jovens aventureiros para os quais a imaginação não tem limites e cujos sonhos não se enquadram na moldura do pensamento cartesiano dos adultos, ficamos com a sensação de que a palavra impossível é um absurdo. E que, no Universo, só há lugar para o belo, o fantástico, o maravilhoso. Até que o tempo se encarregue de fazer com que se preocupem com coisas banais como, por exemplo, a sobrevivência.

Regresso é a depuração e o minimalismo na simplicidade de um diálogo onde se tenta recuperar a felicidade perdida. Onde o Tempo surge como o agente catalizador da Mudança. A simbologia da máscara surge, mais uma vez, como uma distorção ou desvio do caminho da felicidade. A desistência dos próprios desejos em favor dos do Outro. Ou, a paixão recorrente de duas pessoas que, tal como duas rectas paralelas, só se encontram no infinito, num tempo distante, num momento ínfimo do tempo e não no prolongamento de uma vida.

Filho é outra pérola literária desta obra. A evocação de um fim-de-semana em Lugano, onde a solidão interior da narradora contrasta com a felicidade doméstica da família em casa de quem está hospedada. O quadro de uma felicidade alheia, invejada, desejada e conseguida, anos depois, como o prémio supremo.

O outro lado é mais um conto a remeter para o anterior volume de pequenas estórias publicado pela autora.

Desta vez, a inspiração vem de Jorge Luís Borges:

“Não sei se voltaremos num ciclo segundo
Tal como os algarismos em fracção periódica
Mas sei que uma obscura rotação pitagórica
Noite a noite me deixa um lugar no Mundo”.

Um conto onde a repetição anafórica efectuada até ao limite da obsessão nos leva até ao tema da reencarnação através pela utilização de um paralelismo estabelecido entre duas épocas diferentes, tal como em A Queda de Pompeia. O monge copista medieval, que escreve no pergaminho usado depois de raspar o texto do autor original; e a narradora do texto na época actual, que distorce os seus pensamentos originais, apagando-os e substituindo-os por outros, numa sequência periódica que se repete até ao infinito. Noite após noite. Máscara após máscara.

Espera é uma analogia entre dois momentos temporais diferentes. A criança de dez anos vigia os ponteiros do relógio à espera da chegada dos pais. Mais tarde, a mesma espera ansiosa, pela noite dentro, aguardando o amante que tarda em chegar.

Veneza incompleta é o sonho não concretizado por falta de verdadeira motivação. A descrição pormenorizada da antiga Rainha do Adriático, com a sua luminosidade e atmosfera intemporal proporcionada pela arquitectura e pelas obras de arte dos grandes mestres, reconciliam o passado e o presente e conferem a esta estória um sabor muito especial a libertação, mudança e recomeço.

Bichinho da conta fala do mundo dos seres pequeninos e da evolução de uma criança que cresce no sentido contrário: cada vez fica mais pequenino. A ternura colocada neste mini conto está expressa no uso dos diminutivos e na adaptação à linguagem das crianças pequenas que não conseguem dizer os r.

Amor é uma estrela que explodiu e deixou um vácuo, um buraco negro no universo. Fala da perseguição do sonho de amar.

Em Elas, Clara e Nuno, as mesmas personagens da narrativa do tempo actual de A Queda de Pompeia aparecem, aqui, como personagens secundárias. O protagonista é uma espécie de Cyrano de Bergerac dos tempos modernos.

Casa é a negação da realidade, o negativo de uma fotografia da qual se toma consciência pela referência a uma “lua preta”. A negação da infelicidade. Um eclipse. Ou a máscara do sonho. A realidade camuflada que oculta aos amantes o caminho da busca da felicidade. Ou talvez não...

A surpresa e a desilusão chegam-nos com Disfarce onde as duas personagens femininas têm a mesma aparência de Lívia e Clara de A Queda de Pompeia.

Rosas é o terceiro melhor texto da obra. O involuntário poder de sedução e o magnetismo inconsciente da mulher que é livre, cuja acção não é limitada pelas obrigações domésticas. Feminina, bela, desejada e, aparentemente, solitária. Uma situação que não se compara à servidão a que está sujeita a narradora, rejeitada pelo amante/marido, dia após dia. A deusa indiferente desperta um amor fatal num homem vulgar. E a curiosidade da vizinha que, misturada com uma secreta admiração e uma pontinha de inveja…

…despoletam o desvendar da trama…

pescadores de estrelas é a obra de Helena Malheiro onde imperam, mais do que tudo, a obsessiva perseguição do amor e da felicidade – indissociáveis para a maior parte dos humanos.

Um hino à Idade do Ouro da Humanidade. A nostalgia face à infância perdida, pela expulsão dos amantes edénicos do seu paraíso genesíaco…

A beleza cândida do Sonho primordial.


Cláudia de Sousa Dias