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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, January 27, 2007

“A Rumba de Lázaro” de Ernesto Mestre (ASA)


Ernesto Mestre é um autor cubano que, embora ainda pouco conhecido pelo público português, possui duas características que tornam a sua escrita irresistível, para os amantes da boa literatura: a irreverência, a coragem desafiadora de colocar a nu aquilo que muitos só ousam falar por subentendidos; e o gosto pelos detalhes, que lhe permite descrever as situações com todas as suas nuances.
De facto, algumas das personagens que, inicialmente tendemos a identificar como grandes vilões têm, na realidade, um carácter multifacetado: são moduladas, redondas, acabando por revelar facetas inesperadas com o desenrolar da trama. Elas são o meio-termo entre anjo e demónio, podendo assumir uma ou outra face, consoante as circunstâncias. É o caso da personagem fictícia Doña Adela, mãe da protagonista, e da personagem histórica, Fidel Castro, o polémico ditador, uma das figuras mais difíceis de caracterizar.

Em A Rumba de Lázaro, Ernesto Mestre aborda o tema da liberdade de expressão ideológica, o direito de assumir-se como livre-pensador, do exercer a liberdade de expressão escrita e o direito à livre escolha da orientação do desejo sexual.

Mestre insiste, particularmente, na violação dos direitos fundamentais perpetradas pelos representantes, quer a nível nacional quer a nível local, do estado cubano. "Um país onde sonho e pesadelo se confundem".

O romance principia com a narração da infância e adolescência das irmãs Alicia e Marta, filhas de mães diferentes que, em comum, têm um pai irresistivelmente sedutor.

Nesta primeira parte do romance, Doña Adela, mãe de Alicia desempenha o papel de uma Hera, o arquétipo da esposa ciumenta e cruel, face a um marido que é o estereótipo de um Zeus mulherengo e volúvel.

Mas, à medida que a trama se desenrola, a personalidade de Doña Adela vai sofrendo alterações, esculpida pelos golpes de cinzel da Roda da Fortuna: de Hera, Doña Adela transforma-se em Deméter, a mãe abnegada que defende a filha e protege, até às últimas consequências, a neta, Teresita. O Tempo também lhe suaviza o ciúme, permitindo-lhe aceitar a presença de Marta, cuja semelhança com Alicia faz com pareçam gémeas.

O romance prossegue com várias analepses – regressões no tempo – que fazem com que o ritmo do desenvolvimento da trama se assemelhe ao de uma rumba, um refrão que se repete uma e outra vez, num movimento de vaivém. É desta forma que o autor procede à narração das origens das personagens principais envolvidas na história, mais propriamente, daquelas que contracenam directa ou indirectamente com Alicia – a quem os membros locais do partido castrista consideram como a mais perigosa e subversiva contra-revolucionária.

Alicia sente-se irresistivelmente atraída por homens de beleza feminil, andrógina, como é o caso primo Héctor, o acrobata, cuja beleza exótica tem o condão de seduzir homens e mulheres.

Mas apesar do amor desmedido e incondicional de Alicia, a orientação sexual de Hector não deixa margem para dúvidas: é um homem amante de homens. A primeira paixão é o seu irmão gémeo, Juanito, apesar da iniciação sexual de Héctor ficar a cargo do Señor Sariel – o seu mestre nas lides acrobáticas, que não resiste à tentação de o iniciar nas artes eróticas. Este ensina ambos os gémeos a perigosa Rumba de Lázaro – uma profusão de saltos mortais cruzados, no trapézio – um número acrobático que tem o condão de deixar o público hipnotizado.

O Señor Sariel é outra personagem ambígua, de difícil classificação. De aspecto físico grotesco, este ser disforme tem, no plano psicológico, tanto de anjo como de demónio. Excelente professor, manifesta uma adoração ilimitada pelos dois jovens. Sobretudo por Héctor. Mas também é verdade que não deixa de se aproveitar da posição de mestre para abusar sexualmente dos seus alunos.

Já o voyeurismo sexual de quem não assume as suas preferências está a cargo do fotógrafo, amigo da família dos gémeos, que regista os voos prodigiosos dos dois jovens para a posteridade.

Após o desaparecimento de Juanito, Héctor sente uma inclinação, uma paixão platónica por Júlio César Cruz, o viril marido de Alicia, perseguido pelo autoritarismo de Fidel, devido ao seu desejo de independência face à estrutura formal do regime e à fidelidade aos ideais de Che, que deram origem à Revolução.

Héctor tem, ainda antes da sua morte, uma ligação sensual com Triste, o contorcionista, o qual, entrará, mais tarde, em contacto com Alicia, exilada na ilha dos Pinheiros.

É esta fase do romance – o monólogo de Triste, o Contorcionista –, uma das mais belas passagens da obra, pela melancolia impressa no registo poético do amante que vê morrer o objecto amado. É através de Triste que Alicia fica a par do Inferno que foram os últimos meses de vida de Héctor. A tortura, as sevícias, o abuso sexual por parte dos guardas prisionais, que o massacram com o "vício" que estimulam para depois punir, munindo-se dos mais elaborados requintes de sadismo, num ambiente que faz lembrar as celas da prisão de O Beijo da Mulher-Aranha.

Um Livro-Denúncia

Mas, para além da falta de liberdade na escolha da forma de amar, o principal vector de desenvolvimento do romance é os limites à liberdade de expressão, numa ditadura de esquerda. Situação que atinge o seu auge quando Alicia, juntamente com duas amigas, ao traduzirem obras como Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol – uma emanação cultural de um país "capitalista", aliado dos ianques, que pode ser vista como um ataque directo a "El Líder" – e pela leitura e interpretação pessoal que a jovem mãe de Teresita faz do episódio bíblico do Massacre dos Inocentes, referente ao Rei Herodes, num texto ao qual deu o poético título de O Sermão dos Sete Beijos, lido durante a Missa do Galo. O texto é interpretado como um ataque directo aos micro-tiranos de Cuba, como o chefe da polícia política local, que deseja ser mais papista do que o próprio Papa. Ou seja mais fidelista que o próprio Fidel.

O Autor refere-se, em vários momentos do romance, à violação dos direitos mais fundamentais em Cuba. Para além de colocar a nu a ineficácia económica do regime, que está longe de atingir os objectivos de produção estabelecidos por El Comandante-en-Jefe. Mestre denuncia, também, a descarada exploração do trabalho infantil por parte do Estado cubano. Para além de descrever com precisão as falhas no sistema educativo e o escandaloso desinvestimento no sistema de saúde no regime castrista.

O Estilo

O estilo da escrita de Ernesto Mestre está impregnado da poesia e do tom apaixonado de Pablo Neruda, misturado com o onirismo e realismo mágico de Gabriel García Márquez, num romance onde abundam episódios insólitos de elevado sentido de humor como é o caso do galo Atila, que canta como uma arara Pavarotiana e insulta descaradamente Fidel, no auge de uma das suas manifestações patrióticas, ao soltar um violento flato, no momento em que o Líder está a cantar o hino nacional - uma das cenas mais hilariantes e escatológicas da obra.

O episódio de Mingo (apaixonado por uma vaca) e das papaias contaminadas, assim como os estranhos acontecimentos que envolvem Alicia e Marta no rio, são a manifestação do insólito, do maravilhoso, do incompreensível, a escorregar para as cenas oníricas de um quadro de Dalí ou de Onik.

Já o significado simbólico das Comedoras de Palavras exprime uma acutilante estocada, em forma de parábola, ao sistema de delação de supostas actividades contra-revolucionárias face ao governo de Fidel.

A Estrutura

A trama desenvolve-se imitando os passos de uma Rumba, cheia de avanços e recuos que explicam o percurso e os antecedentes de cada uma das personagens, que intervém activamente no desenvolvimento do romance, para que possamos entender as suas atitudes.

Existem dois tipos de narradores: o narrador não participante, que relata o percurso da maior parte das personagens e, um narrador participante, o amante de Héctor, Triste, o Contorcionista. À extrema dureza presente nas cenas narradas no seu monólogo, opõe-se a belíssima prosa poética recheada de melancolia numa dilacerante narrativa que dá a conhecer a Alicia o trágico fim daquele a quem ambos amaram.

São muitas as intertextualidades presentes no romance, dentre as quais se pode destacar alguma semelhança com García Márquez, como já foi referido. Está, também, presente a influência de Isabel Allende na violenta contestação feita pela pena de Mestre aos regimes totalitários, às violentas torturas e inexplicáveis desaparecimentos de cidadãos nas húmidas e fétidas celas prisionais. Também encontramos ecos do Salto Mortal de Marion Zimmer Bradley, na paixão homossexual entre os dois acrobatas, Héctor e Juanito.

Mestre tem a capacidade única de transformar a fealdade em beleza, para além de ser um virtuoso no uso da ironia, da metáfora e da parábola.

Um livro que, para além da incomensurável beleza da expressão escrita, nos obriga a pensar do ponto de vista crítico, nos acontecimentos históricos da segunda metade do século XX.

Um golpe de machado nos preconceitos que ainda subsistem no século actual.

Cláudia de Sousa Dias

Friday, January 19, 2007

“O Estranho Amável” de Luísa Monteiro (Hugin)


A Alice de Lewis Carrol aos oitenta anos, encerrada num lar em terras algarvias, continua a viver o seu mundo de sonho e maravilhas.

O Pré Surrealismo de Carrol alia-se ao surrealismo de Luísa Monteiro em
O Estranho Amável ao adicionar à personagem do conto infantil uma audaciosa nota de provocação com a defesa do direito a sonhar e viver o seu próprio mundo, numa estranha e, nem sempre compreendida, forma de rebeldia. Uma temática ousada para uma sociedade onde os idosos são excluídos, tratada pela pena da Autora com as suas mais do que inesperadas associações que se manifestam nas mais surpreendentes metáforas, personificações e sinestesias.

Na primeira parte, A Dança do Cão Mundano, a personagem de Alice, já de si sonhadora, sofre um AVC, representado pela queda num buraco, ou melhor, num precipício, cujo impacto causa o esquecimento ou a perda de memória. O que atrai esta Alice para o rochedo não é o Coelho como na história de Carrol, mas o “miado lamurioso” da gatinha Dina – que é mencionada no conto de Carrol mas que não faz parte integrante do sonho da pequena Alice.

Há, no centro da temática de O Estranho Amável, uma cisão com a realidade que é notória tanto na Alice adormecida como na Alice acordada. E há, também, uma tendência para a cristalização do desenvolvimento emocional, na fase correspondente à infância, apesar do seguimento normal do seu crescimento físico/biológico: Alice coloca sempre as actividades que lhe causam prazer acima dos deveres mais básicos como, por exemplo, o cuidado com as crianças (o primado do princípio do prazer sobre o princípio da realidade).

Este é um dos lados da moeda.

O outro é o do marido de Alice. Tanto o marido, Fernando, como Luís, um estranho amável para a jovem Alice, tendem a gostar de mulheres-crianças. O primeiro, para se sentir senhor da situação, pelo desejo de exercer domínio em relação à parceira; o segundo, para poder partilhar o gosto de vaguear pelo mundo da fantasia.

Enquanto que o primeiro quer possuir, o segundo quer partilhar. Talvez por isso, Luís, o estranho amável, nunca passe ao acto de união física com a menina por quem nutre “um afecto tão grande que não cabe dentro de si”. Um afecto que se prolonga pela vida inteira até aquela idade em que a beleza e a juventude abandonam definitivamente o corpo, mas não a mente. E, na mente idosa de Alice, a ligação à realidade torna-se, de dia para dia, mais ténue.

Na escrita de Luísa Monteiro a Tragédia, o Medo da Morte, são simbolizados pela cor azul, uma cor aziaga – ex: a cor das batas das auxiliares dos hospitais, os Anjos da Limpeza.

Na cama ao lado, está a Rainha de Copas, uma mulher que consegue cativar a simpatia de Alice, apesar dos seus modos aparentemente bruscos, algo arredios. Uma mulher de carácter forte, personalidade vincada, que esconde uma enorme carência afectiva por detrás dos seus modos agrestes e da doença, que começa a devastar-lhe a memória.

Já Alice, apesar de não reconhecer ninguém da sua família, não deixa de antipatizar com a nora com a sua “boca enorme e vermelha como a entrada para o inferno”. Além disso entra em competição com a neta, por uma boneca de pano, como se esta tivesse uma idade próxima da sua, o que resulta num episódio extremamente divertido.

Perdida no limbo entre o sonho e a realidade, Alice divaga ao recordar, Lolita, a sua porquinha de estimação, que possui o mesmo nome da companheira de enfermaria. O cachorro D. Rafeiro de La Mancha é outra personagem que povoa os seus sonhos, seu aliado na cruzada em defesa dos animais e dos mais fracos em geral.

A escrita relacionada com o pensamento de Alice, durante o período em que sonha, sob o efeito dos medicamentos, é profundamente emocional, caótica, sem a preocupação da coerência: a mão que escreve transforma em palavras a linha emocional do pensamento onde entram a porquinha Lolita, a gata Dina, D. Rafeiro de la Mancha e Sancho, o burro, o grifo...

Na segunda parte, intitulada de Mancebias Literárias, Luísa Monteiro mostra a génese da paixão das personagens pelo seu autor, em cuja imaginação inspiram a criação literária – a de Alice pelo seu preceptor, Luís (como Lewis Carrol) e, a de Lolita, pela do professor Vladimiro (como Nabokov).

Ao mesmo tempo, ilustra o retrato mórbido, o ambiente asséptico, a atmosfera deprimente do hospital, o discurso brejeiro e os gestos impessoais dos Anjos da Limpeza . É aqui que a “Rainha de Copas” Lolita, ao vaguear pelas suas memórias, recorda Alice na juventude, bela como uma alegre e amarela flor do campo – um retrato físico, que muito se assemelha ao de Hildegarde As Sobredotadas. Ou é Hilde que é como Alice, só que não a deixam…

No meio do seu devaneio, a Rainha traz à luz do dia a sua admiração desmesurada por Alice…

Alice é, para a Rainha Lolita, o ideal, o modelo, ao qual, na ânsia de o querer imitar, seduz o professor Vladimiro tal como a outra Lolita, a de Nabokov. As consequências são a fuga, a s dificuldades económicas e a luta pela sobrevivência que mata uma paixão que se transforma em opressão.

Para Alice, o toque dos sinos é simbólico – sinal de memória, que ilumina as recordações que se apagadas pela acção dos fármacos.

É neste plano, que ela reencontra Luís, transfigurado, envelhecido, semelhante a uma caveira – provavelmente já atravessou o Estige na Barca de Caronte. Luís é preso nos voos azuis de Alice – mais uma vez a cor azul associada à morte. Luís é despojado do sentido da vida ao ser separado de Alice.

“Mas o Amor, tal como Deus, tem o poder de se opor à vontade humana”.

A terceira parte recebe o título de Poema de Pequenez Voadora no qual a personagem Alice dá largas ao prazer de imaginar, que se manifesta no alheamento a que se abandonam os idosos, característica a que a sociedade em geral atribui o rótulo de perda das faculdades mentais.

Alice possui a convicção de que a criatividade só pode surgir de uma mente não convencional, que não está espartilhada pelas regras normais do raciocínio lógico: “só escreve quem nasceu com a cabeça desarrumada como uma casa. O acto da escrita é o da arrumação...” e que “...um poema é um jogo de palavras e emoções e o que não é dito é sugerido”.

A fronteira entre o real e o imaginário é muito estreita porque “a realidade é uma pergunta elástica que se estica até ao infinito”.

A quarta parte do romance, Cisnes da Aldeia, é a recuperação de um episódio fundamental na vida de Alice. As belas tias, virtuosas e bem comportadas, Elisa e Augusta, não conseguem seduzir o atraente professor Luís, sempre encarceradas nas convenções do socialmente correcto, sem aquela alegria espontânea e pensamento surpreendente de que só Alice é possuidora. E, na velhice, ele torna-se o seu estranho amante. O estranho amável.

Os amantes idosos são alvo dos gracejos dos Anjos da limpeza e do despeito inicial de Lolita.

O sono conciliador de Alice, condicionado pelos ansiolíticos, lança-a, mais uma vez, no mundo, onírico, surrealista, cheio de linguagem codificada, onde tudo é metáfora – ou personificação – de tudo.

Alice reflecte, dando largas ao seu pensamento divergente, carregado de irreverência, sobre os malefícios da História e do culto da Saudade, que obriga um povo a voltar-se para o passado e a estagnar. Como a mulher de Loth, transformada em estátua de sal (lágrimas solidificadas).

As tias de Alice são encantadoras, generosas, fascinantes e atenciosas, mas também orgulhosas, despeitadas e algo vingativas. Também são, por isso, capazes de sentir paixões violentas como se nota pelos “olhares coruscantes” como o brilho dos rubis que usam pendurados ao pescoço. Mas é esta personalidade dual que as transforma em estátuas de sal como a mulher de Loth...

A rebeldia e o pensamento divergente de Alice nunca foram entendidos pelos adultos, obrigando-a a recalcar estes dois traços da sua personalidade-base. A Alice idosa descreve, com impressionante lucidez, a diferença entre a verdadeira e a falsa amabilidade, as fases do amor convencional, previsível e destinado a transformar-se em tédio, a esvaziar-se do seu conteúdo.

A audácia de Alice, enquanto criança, vem novamente ao de cima, na velhice, com a frase: “desejo (...) um amor romano, iniciado na cama, propiciado pelo vinho e pela música, que cresça depois com o namoro e que floresça com a amizade – até ao pó”, frase com a qual desafia a autoridade da directora do hospital. A qual, mais tarde, completa com o repto “é graças aos degenerados que as famílias podem continuar a apostar na ausência de mácula que pensam ter”.

Alice está a lembrar-se concretamente das suas tias, sem mácula que se vingam de terem sido preteridas ao fazerem com que o objecto do seu desejo seja expulso. Contudo, definham após concretizarem a sua própria vingança. No entender de Alice, “elas é que eram o fogo em que se queimaram – tinham, de facto, uma luz própria”

A Autora, embora numa óptica algo pessimista, é compreensiva com os que amam ou melhor, com os amantes. Os quais, como Ícaro, tentam chegar ao Sol (o amor ideal, perfeito, absoluto), mas que acabam por se queimar e sofrer sem alcançarem plenamente o objecto desejado.

Para a uma das personagens que partilham a enfermaria com Alice, o ser perfeito tem um carácter dual, andrógino, como o estranho amável de Alice: “feminino na forma de sentir, masculino na forma de pensar”, um ponto de vista que partilha com a própria Luísa Monteiro (ou vice-versa).

Na quinta parte, A Lebre Cor de Púrpura, temos a oportunidade de esclarecer, reunir e comparar as principais diferenças entre as duas protagonistas femininas Alice e Lolita. Entre ambas, existem afinidades, embora as duas mulheres se exprimam de forma oposta. Lolita é mais carnal, passou a frase do amadurecimento, a fase adulta com a autonomia que Alice nunca obteve. Lolita tem, por isso, uma postura activa durante o episódio em que as duas idosas traquinas resolvem fugir do lar para procurar o namorado de Alice. Esta, pelo contrário é quase sempre passiva, apesar da sua rebelião, insubmissão interior, que vem ao de cima em situações extremas como quando desafia a directora do hospital.

A escapadela de ambas coloca todo o staff do hospital em alvoroço a ponto de o seu regresso ser festejado com um banquete. A língua viperina de Lolita continua a destilar veneno em todos aqueles de quem não gosta como uma das suas ex-alunas, uma socialite que quer exibir o prestígio da ex-professora universitária para se auto-valorizar.

Afinal Lolita é tão vulcânica quanto a Lebre de Março de Carrol...

E a sua língua tão cortante quanto as sentenças da Rainha de Copas...
Da sua boca saem os nonsense típicos do Autor britânico, como autênticas provocações face àqueles que a rodeiam e querem condicionar o seu comportamento. Enquanto que Alice é a mulher do amor perfeito, absoluto, Lolita é a mulher das loucas paixões. ... Lolita foi, também, uma mulher invulgarmente culta, cujo saber despertava a admiração daqueles com quem contactava.

E afinal Luís, o estranho amável, está presente (ou não?), indiferente aos virotes de Lolita ou aos comentários maliciosos dos convivas…É, contudo, difícil imaginar em que plano Luís está, de facto, presente, isto é, se no plano físico se no plano espiritual ou no imaginário de Alice…Afinal, na altura em que Alice está internada, a sua idade será a de, aproximadamente, 102 anos!

Apesar de aparentemente submissa, Alice inspira Lolita (ou Carrol inspira Nabokov). Dentro da sua rebeldia interior, expressa sob a forma de um sentido de humor corrosivo, na esmagadora maioria das vezes desconcertante, o reino ditatorial da Rainha Lolita de Copas, aquele onde o Absurdo ocupa lugar de destaque, é identificado como a “anarquia da mona” (monarquia) que é privilégio das pessoas de idade mais avançada.

No sonho de Alice, repete-se o descarado assédio da Duquesa, tal como na história de Carrol, que a encharca de pimenta e que, na obra de Luísa Monteiro, continua a significar a corrupção da linguagem e das atitudes.

A sexta parte resume exactamente aquilo de trata o romance, um romance cuja estrutura é constituída por um conjunto de Intertextualidades que se desenvolve numa trama inteiramente nova.

Mas neste capítulo as intertextualidades são mais do que muitas multiplicando-se: os descendentes de Alice. Estes tentam intervir para tirá-la do lar e fazer com que ela volta a viver com o marido. Todos eles têm todos os nomes das personagens da série Os Cinco de Enid Blyon. A personalidade de cada um mantém-se, embora amadurecida uma vez que já são todos adultos. Já Ema, a directora do hospital, foi roubada a Flaubert, uma Madame Bovary do final do século XX. Também se encontram referências a Yourcenar.

Durante a fuga, no capítulo anterior, ambas as personagens voltam a encontrar outro estranho amável que julgam poder fornecer-lhes a pista de Luís. Ambas lhe inspiram sentimentos de ternura por lhe recordarem entes queridos.

Já o marido de Alice é visto como um Judas, repugnando a Ema a cor ruiva do seu cabelo, que associa à cólera, sabendo do seu historial com Alice. Alice é como o pequeno pássaro selvagem, que definha se aprisionado. E também as suas asas impelem-na para longe dos aspectos terrenos da vida. Luís é, contudo, a alma que a completa com “um amor desprovido da necessidade da matéria.

O epílogo Pelos Girassóis vem dar o toque final, a cereja no bolo, que estrutura a trama em sete partes, um número mágico para a Autora.

Nesta fase, o alheamento de Alice alastra e a cisão com a realidade é cada vez maior, até ao segundo AVC, após o qual ela mergulha definitivamente num mundo só seu. Onde Alice escreve em cadernos azuis – mais uma vez, a cor da morte - os seus pensamentos aos quais dá o título de As cinzas do Azul ou O outro mundo de Alice.

Um mundo maravilhoso onde correm os amantes em espírito, por entre os girassóis, em perseguição da Lebre de Março…

Mais uma história de extraordinária beleza e ousadia de Luísa Monteiro.

Que nos deixa, mais uma vez, sem palavras…


Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, January 10, 2007

“Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll(Biblioteca Visão)


A origem de “Alice” teve início numa viagem de barco com o Autor e as jovens adolescentes Lorina; Alice e Edith, filhas de um deão da Christ Church, seu amigo.

O conteúdo da história é, sobretudo, onírico e recheado de pormenores surrealistas, onde o sonho da personagem principal está carregado de significado simbólico, expresso em linguagem codificada que a liga ao meio ambiente circundante e que está, simultaneamente, relacionado com as transformações psíquicas e fisiológicas pelas quais Alice está a passar.
Alice é uma jovem que se encontra no estado de transição entre a infância e adolescência, uma menina de personalidade sonhadora, etérea, que vive num mundo próprio com uma ténue ligação à realidade, ao contrário do que acontece com as irmãs.

Para Alice no País das Maravilhas, Carroll ampliou uma história improvisada a que deu o formato de um livro. Dez anos depois, publica Alice do outro lado do Espelho. São obras que não têm um conteúdo moralista ou moralizante, ao contrário do que é habitual em histórias para crianças, na época (finais do século XIX).

Os surrealistas como Salvador Dalí, nas artes plásticas e André Breton, na escrita, viam-no como o precursor das suas inovações estéticas.

Carrol foi, também um hábil fotógrafo amador, fazendo incidir o seu trabalho em jovens raparigas, cuja amizade apreciava. Publicou, também, diários e cartas.

Em relação a Alice no País das Maravilhas, o poema introdutório refere-se à personalidade das três jovens que acompanham o Autor na viagem, durante a qual surgiu a inspiração para este conto. O Autor, celibatário e algo misógino, tende a desenvolver empatia apenas com mulheres extremamente jovens e, principalmente, com aquelas que são possuidoras de uma sensibilidade fora do comum. A proximidade e a empatia perdem-se, no entanto, no contacto com mulheres de personalidade mais forte e de elevado nível de autonomia ou tendência para exercer domínio em relação aos que as rodeiam.

As três irmãs comportam-se de forma radicalmente diferente no que respeita à forma de estar na vida.

“A Primeira ordena, implacável”. O verbo e, sobretudo, o adjectivo utilizados mostram o tipo de relação que o Autor estabeleceria com esta “Primeira”, cuja personalidade nada tem a ver com a protagonista do conto. Tratar-se-ia de uma relação de domínio onde se sentiria subjugado.

“A Segunda, mais doce, pede”. O adjectivo doce e o verbo pedir indicam submissão, cordialidade, desejo de agradar. Para esta Segunda, “Tem de haver muita fantasia”. Esta é, Alice, inequivocamente, a grande protagonista de Alice no País das Maravilhas.

“E a Terceira interrompe-me (…) Não mais de uma vez em cada minuto”

Esta terceira jovem revela alguma temperança e equilíbrio entre o seu lado sonhador e o lado realista, apreciando ambas as componentes na sua justa medida. Revela, ainda, alguma independência enfatizada pela utilização do itálico mais. Nota-se, nas entrelinhas, algum desagrado do Autor/narrador face a esta quase que impertinência da terceira jovem, pelo conotação do verbo interromper, o que demonstra ousadia e uma personalidade algo indomável, que tende a escapar ao seu controlo.

A juventude e vivacidade das Três, que se assemelham às três graças, cativam-no, mas é à fome imensa de fantasia e à fragilidade volátil da Segunda que vai buscar a inspiração e os ingredientes para construir a história de Alice no País das Maravilhas – “o mundo colorido e mágico da infância” – que ele compara à Terra Prometida.

A história inicia-se quando Alice adormece, entediada pela obrigação de ler ou estudar. Alice é uma pessoa nitidamente visual, isto é, cujo imaginário é mais facilmente estimulado por sensações visuais. Que é o que não falta no sonho de Alice. As imagens sucedem-se, sobrepõem-se, ramificam-se, criando uma profusão de cores, formas e situações que se entrelaçam num encadeamento semelhante ao das telas de Dali.

O País dos Sonhos, no qual Alice se movimenta, parece, à primeira vista, um amontoado de absurdos.

Mas se tivermos em conta que, na época em que Lewis Carroll escreveu esta história, aparentemente influenciado pelas teorias de Sigmund Freud acerca do inconsciente e do conteúdo latente e simbólico dos sonhos, as quais começavam a causar impacto no meio intelectual. Sob esta perspectiva, o significado atribuído ao conto, começa, subitamente, a fazer sentido.

As características da escrita de Carroll são: imaginação, humor e nonsense que se manifesta num gosto especial por trocadilhos e pequenas confusões causadas por palavras homófonas.

Por outro lado, o conteúdo da história trata, sobretudo, do problema da socialização e da interiorização das normas sociais e de aprender a lidar com o ego dos outros. Alice tem, em primeiro lugar, de aprender a controlar os seus impulsos. Caso contrário, sofre as consequências, como acontece na cena em que bebe todo o conteúdo da pequena garrafa, em cima da mesa de vidro, que se encontra diante da pequena porta do País das Maravilhas, apenas por conter o sabor de tudo aquilo de que ela gosta.

As consequências são as alterações de tamanho, o que significa um comportamento desadequado.

Até à altura em que Alice percebe, com a ajuda da Lagarta, a justa medida das coisas assim como o senso de harmonia e equilíbrio, quando tem de comer o cogumelo sem deixar nenhum dos lados desfasado.
A lagarta é, na realidade, um professor de ética e de etiqueta, que a ajuda a passar para o patamar seguinte. Da mesma forma, Alice tem de aprender a ser diplomática e a evitar gaffes sempre que não se encontra no mundo protegido da sua casa. Por exemplo: quando comenta com o Rato que acabou de conhecer o quanto gosta da sua gata Dina, porque tem muito jeito para caçar ratos!

As alterações constantes de tamanho têm, também, a ver com as alterações físicas desencadeadas pelo facto de Alice estar em processo de transformação: a passagem para a adolescência.

Mas para lidar com esta situação Alice conta, também com a ajuda da Lagarta.

Os ensinamentos desta personagem ser-lhe-ão muito úteis, numa fase posterior, quando Alice tem de lidar com personalidades tirânicas como a Duquesa ou a Rainha de Copas.

O gato sorridente, que aparece na história, simboliza, na realidade, as pessoas que são subservientes e aduladoras e que, na língua inglesa, são rotuladas com a expressão idiomática “Cheshire Cats”, que, muitas vezes, significa a hipocrisia.

Ao facto de um leitão ocupar o lugar de um bebé, tem a ver com a forma como Alice encara as crianças pequenas – seres incómodos e birrentos que desestabilizam a rotina de uma casa.

O teste supremo da socialização de Alice tem lugar no momento do chá com o Chapeleiro Louco – The Hatter, expressão idiomática que significa O Louco – e a Lebre de Março – outra expressão idiomática que significa a fêmea com o cio. Aqui observamos o contraste do low profile de Alice com as atitudes tresloucadas dos seus companheiros – Alice começa a amadurecer.

A protagonista tem, ainda, de contornar as atitudes inconvenientes da Duquesa, cuja excessiva proximidade lhe causa algum desconforto, e o despotismo da Rainha.
O comportamento da Duquesa indicia uma espécie de abuso de que Alice, com a sua inocência, se apercebe, mas que não consegue identificar. O simbolismo da pimenta é mais uma pista a apontar para esta teoria: a Pimenta está claramente conotada com a corrupção. E tudo à volta da duquesa está impregnado de pimenta.

Por outro lado, em relação à Rainha, Alice não pode contar com a simpatia ou a benevolência do Rei, completamente subjugado pela mulher. No retrato que este tece da Rainha, sua esposa, nota-se o medo excessivo do Autor face às mulheres dominadoras ou detentoras de poder, um receio que raia o pânico psicótico face à tirania feminina. Daqui nasce o fascínio por mulheres imaturas.

O Grifo é, aparentemente, um aliado de Alice. Esta figura representa um animal mitológico que leva a jovem para longe da Rainha. Mas que também significa, para ela, a repressão pelos adultos. É também o mestre do nonsense. Dominador, desvaloriza o saber e privilegia a brincadeira, tentando manter Alice no limbo entre a infância e a passagem definitiva para a adolescência. O Grifo identifica-se um pouco com o próprio Carroll.

Mas, quando Alice começa a libertar-se e a afirmar-se como uma pessoa independente - no julgamento, onde todos a tentam descaradamente manipular – esta acorda, regressando à realidade. À companhia das irmãs.

Pouco depois, também a irmã adormece. Mas o seu sonho é radicalmente diferente do de Alice, é mais ligado ao mundo real, longe de ser tão carregado de simbolismo e fantasia. Porque o imaginário desta irmã de Alice está muito mais direccionado para o mundo pragmático dos adultos, enquanto que o de Alice está em pleno processo de transformação.

A frase do texto que decifra a personalidade de Alice é dada pelo pensamento da irmã que ao imaginá-la adulta, vê-a a conservar, durante a vida inteira, a ingenuidade da infância.

Uma Perséfone a apanhar flores antes de ser raptada por Hades o Rei dos Infernos...


Cláudia de Sousa Dias