HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

My Photo
Name:
Location: Norte, Portugal

Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, June 23, 2008

“O Doutor Jivago” de Boris Pasternak (Europa-América)


O contexto histórico de O Doutor Jivago incide nas transformações sociais ocorridas logo após a Rvolução de Outubro de 1917 a qual culmina com a execução da família Romanov e a instauração do Regime Soviético, em vigor durante mais de 70 anos.

O romance valeu o Prémio Nobel ao Autor em 1958. Foi, no entanto, impedido de o receber pelas autoridades estatais da União Soviética que não permitiram a sua deslocação a Estocolmo para o efeito. Só em 1987 Pasternak será reabilitado por Gorbachov, dentro do movimento da
pereströika e a sua obra finalmente divulgada dentro do território da URSS.

O Doutor Jivago é, em muitos aspectos, revestido de carácter autobiográfico, uma vez que o protagonista do romance – um médico-escritor-pensador-poeta que coloca a nu as contradições do regime ao utilizar uma linguagem objectiva, na maior parte das vezes de pendor jornalístico, ou sob o formato de crónica, sempre sem recorrer a juízos de valor – vê-se, subitamente, privado de uma colocação estável, devido aos seus escritos e à livre expressão do Pensamento. Jivago é um homem fortemente ligado à realidade do quotidiano e, ao descrevê-la objectivamente, torna-se perigoso para os homens de ideias abstractas, por colocar em evidência o enorme abismo entre utopia e realidade.

A linha de desenvolvimento do o romance explora, através de quadros que ilustram cenas do quotidiano de todas as classes sociais que compõem a pirâmide social russa da época, através de uma análise fria e da utilização de uma linguagem de carácter informativo-jornalistica para descrever os factos históricos. Em ambas as situações, o narrador actua como um observador, um fotógrafo ou um camaraman, o qual manobra a sua objectiva para captar cenas individuais, envolvendo cidadãos anónimos mas inseridas num quadro de mudança estrutural a todos os níveis: económico, social e cultural.
Um olhar nem sempre conveniente para os órgãos difusores da propaganda comunista. Pasternak empenhou-se em mostrar como a dissecação das contradições decorrentes de uma total destruição da superestrutura político-jurídica e da interacção dos agentes económicos se traduziu num caos e desagregação económica e de uma situação de empobrecimento generalizado onde se junta a falta de bem consumíveis mais básicos.

A tomada de consciência colectiva desta desorganização iria colocar o novo governo numa situação embaraçosa que o desacreditaria sendo, desta forma, compreensível a necessidade de colocar uma obra deste género na sombra.

As transformações ocorridas no quotidiano das gentes da velha Rússia são-nos mostradas em O Doutor Jivago através da análise transversal da sociedade da época – finais da primeira Grande Guerra do século XX e interregno entre as duas Grandes Guerras, até ao final da Segunda Guerra Mundial.

A mudança mais notória é o desaparecimento de uma burguesia progressista e empreendera, de uma aristocracia agarrada às velhas tradições que remontam ao feudalismo e de uma classe intelectual proveniente destas duas facções, durante o reinado de Nicolau II. Parte dessa mesma classe intelectual acaba por se converter em burocratas, difusores da propaganda no novo regime, algo que Pasternak e o seu alter-ego, Jivago, se recusam a fazer, sofrendo as consequências da sua opção ou, melhor dizendo, da insistência da observação da neutralidade ideológica e manutenção da independência e integridade do pensamento individual e das atitudes face ao Estado.

O Czar Nicolau, apesar de ser uma personagem meramente figurativa neste romance, mostra-se como um governante que, apesar de ligado às tradições, se mostra receptivo a novas formas de governação de inspiração francesa quer no que toca ao desenvolvimento da indústria – a Rússia encontra-se nesta altura em pleno arranque da Revolução industrial – quer na orientação ideológica na forma de governar retirada do Iluminismo. Apesar das constantes ameaças ao regime, provenientes dos movimentos revolucionários de inspiração marxista que actuavam na sombra e intensificados pela revolta popular após a execução do mago e monge Rasputine – o qual Nicolau II considerava como charlatão, cínico e falso milagreiro – o Czar decide abolir a pena de morte, reinstaurada após a Revolução pelos Sovietes.

Os conflitos anteriores à Revolução de Outubro são, segundo o ponto de vista de Pasternak e confirmados por várias fontes históricas da época, despoletados pelos abusos de poder por parte de alguns elementos das classes mais favorecidas traduzindo-se em actos despóticos e de vandalismo verificando-se, simultânea e frequentemente, a impunidade dos mesmos. Uma classe representada claramente pelo escorregadio e camaleónico Komarovski ou Komarov, advogado burguês no tempo do Império e burocrata no novo regime, que se serve da sua posição para exigir favores sexuais a Lara, a protagonista feminina.

Os tumultos, as revoltas, as cenas urbanas e campestres têm, como pano de fundo, a tecedura de um cenário recheado de detalhes e cambiantes cromáticos, sonoros e cinestésicos que permitem a visualização de todas as cenas como se estivéssemos a ver um filme, passado não só em Moscovo, mas também na Sibéria, nos Urais, na fronteira com a Ásia e a Mongólia.

A escassez a nível generalizado está patente, sobretudo, nas cidades onde a dificuldade em adquirir lenha ou outro combustível para o aquecimento – face ao desaparecimento dos fornecedores e pelos rigorosos esquemas de racionamento decretados pelo Governo – agudiza a proliferação da fome, bem como das doenças infecciosas, apesar do silêncio generalizado relativamente à origem destes factos.
As alterações dos hábitos de toda uma sociedade, a começar pelas classes outrora mais favorecidas, traduz-se na ocupação de espaço no palacete da família da esposa de Jivago, Tonia, em Moscovo obrigando a família a deslocar-se primeiro para Varikino, na Sibéria junto aos Urais e, depois a procurar exílio em Paris.

As consequências da proibição no que respeita à produção e fornecimento de qualquer bem primário ou manufacturado ficam evidentes pela constatação de Jivago ao verificar que Tonia não consegue produzir pão, para consumo próprio e venda do excedente, no palácio de Varikino; ao enfrentar as dificuldades titânicas em encomendar uma peça de vestuário para uma emergência a uma costureira – toda a iniciativa privada está proibida – uma vez que tal só é possível nas fábricas estatais tendo de preencher, para o facto, uma requisição. Mesmo, uma nova fechadura para a porta da entrada da casa de Lara em Iuriatine, que se encontra partida, dada a impossibilidade de encontrar um serralheiro a exercer funções, não se consegue arranjar.

Boris Pasternak nunca critica o regime directamente para evitar transformar um romance que pretende descrever uma realidade social em contexto de mudança, num manifesto de contra propaganda comunista, o que lhe retiraria crédito e verosimilhança. E é esta última característica que, por estar tão impregnada no romance, aumenta exponencialmente a força o impacto do texto e obriga o leitor a reflectir sem submetê-lo a todo um esquema de argumentação ideológica e abstracta, vazia de conteúdo.

O Amor como temática principal inserido em contexto histórico adverso

Outro tema-chave de O Doutor Jivago é o Amor, ou não fosse um poeta a personagem principal. O amor está presente em todas as suas manifestações, desde o amor filial – logo na primeira cena, com Iuri Jivago como protagonista no funeral da mãe – a colocar em evidência o carácter ultra sensível do protagonista cuja debilidade física, ainda embrionária, acabará por vitimá-lo pouco depois de atingir os quarenta anos. A expressão deste amor filial em Iuri é, depois, transferida para os pais de Tonia, que acabam por adoptá-lo até entrar, oficialmente, para a família após casar com a irmã adoptiva.
Jivago e Tonia vivem, durante muitos anos, como irmãos e desenvolvem um afecto mútuo e genuíno.
Tonia é dotada de um espírito pragmático e grande desembaraço, adquirido durante o período em que estuda Direito, em Paris. É através de do percurso de Tonia e, mais tarde de Lara, que nos apercebemos que, no início do século XX, as mulheres da alta média e alta burguesia eram incentivadas ou, pelo menos não eram impedidas de frequentarem o ensino superior e exercer profissões liberais, o que não acontecia na maior parte dos países da Europa Ocidental, Portugal inclusive.

O carácter de Tonia cria um forte contraste com a índole sonhadora e romântica de Jivago, que escolhe a profissão de médico, com o objectivo de ser útil à sociedade, por um lado – e, também, para garantir uma colocação que lhe permita sustentar uma família. Para além da Medicina, Jivago dedica-se apaixonadamente à escrita. Como poeta, filósofo e esteta desinteressado das questões materiais, abdica da herança paterna em favor dos irmãos, para não dispersar a energia em conflitos jurídicos que poderiam impedir, quer o desenvolvimento do lado criativo da personalidade quer a concentração necessária ao exercício da profissão e a dedicação aos estudos.
Com a chegada da adolescência nasce, entre Tonia e Jivago, um amor adolescente, largamente incentivado pela mãe de Tonia, sobretudo quando esta se encontra fatalmente doente.

Mas o aparecimento acidental de Lara na vida de Iuri, já depois de casado, despoleta autêntica uma revolução, um caos emocional no íntimo de Iuri Jivago, tanto quanto o comunismo subverte as estruturas da velha Rússia de raízes feudais. Lara representa para Jivago O Ideal de Eterno feminino, a própria Inspiração.
Na verdade, ambos têm muito em comum, desde a forma de ver o mundo até aos gostos estéticos. Mas a característica principal dos dois amantes é o altruísmo. Lara e Jivago são, ao mesmo tempo, semelhantes e complementares: à faceta sonhadora e idealista de Jivago, junta-se o pragmatismo de Lara para a resolução dos pequenos grandes problemas do quotidiano, como a prática de enfermagem e resolução de problemas logísticos em casa. Aluna brilhante, Lara é uma jovem que pretende continuar os estudos para poder leccionar – um impulso para trabalhar para a colectividade muito semelhante ao de Jivago. Tudo isto reúne um conjunto de factores que reforçam uma atracção espontânea, recíproca e imediata, entre o par romântico da obra.

Em relação ao marido de Lara, Pavel Antipov, Lara alimenta por ele um forte sentimento de amizade e solidariedade a par de admiração. No entanto, Lara “ama-o com a cabeça e não com o coração”…

Antipov é um indivíduo bem intencionado mas no qual se nota, logo a partir da descrição do seu aspecto exterior, um a excessivo apego à ordem, à arrumação, a par de um sentido de dever que o leva a colocar a obediência às normas num patamar que supera, inclusive, os afectos.
Por seu lado, Jivago acaba por simpatizar com o marido de Lara, intuindo também, o fim deste, como consequência do desenrolar dos acontecimentos que ditam a marcha da história. O excessivo apego às regras acaba por tornar Antipov inconveniente ao próprio regime.

Nos últimos oito anos da vida, Jivago encontra uma terceira mulher – Marina – de origem humilde, mas que não consegue fazê-lo esquecer Lara. Jivago perde até a vontade de lutar, de escrever, de combater a própria doença, desde muito cedo auto diagnosticada…

A síntese
A ligação entre os dois temas principais, paralelamente desenvolvidos, é o despoletar de mudanças radicais que, tanto as ambições políticas como o amor, desencadeiam no Homem. A desagregação das estruturas, causada pelo primeiro termo, traz ao de cima, em situações extremas, impulsos tão bestiais como a antropofagia. A única coisa que o Estado não consegue expropriar – porque ainda mais rebelde que as reviravoltas políticas dos grupos mais extremistas – é o amor. Principalmente o amor que não cabe dentro de convenções sociais, do sentido do dever…O amor por Lara é algo a que Jivago se agarra com “unhas e dentes” porque é a única coisa que lhe resta. Quando lho retiram, por intermédio de Komarov, deixa de se importar seja com o que for. O astuto advogado revela uma conduta que faz lembrar Scarpia – o vilão da ópera de Puccini ou o Shakespeariano Iago.

O Simbolismo na escrita de Boris Pasternak

A beleza, o romantismo e a melancolia, profundamente enraizados na tradição cultural do imaginário russo estão, em O Doutor Jivago, presentes sobretudo nas lendas e canções tradicionais em vários momentos do romance, onde se destaca a ladainha entoada pela velha curandeira, “rival” de Jivago no tratamento das feridas de guerra dos soldados da unidade onde este se encontra destacado, no Exército Vermelho, pouco antes de desertar.

A identificação da paisagem visual com o estado de alma de Jivago, frequente na obra, causa um forte impacto visual, ao desempenhar o papel de canalizadora de emoções. O gelo e a infinita gradação de nuances de branco e cinza na paisagem siberiana traduzem, normalmente, o desespero; o carácter eterno e a solidez de árvores como as bétulas, os abetos e os pinheiros, essenciais à sobrevivência por fornecerem a madeira indispensável ao aquecimento nas habitações, são um presença que transmite conforto.
Os pássaros como os corvos e as gralhas, são sinalizadores de mau presságio, com o seu crocitar escarninho. Também o narrador, quando quer mostrar a linha de pensamento de Jivago, identifica-o com o rouxinol, ave de aspecto insignificante, mas cujo canto tem o poder de deslumbrar o mundo – tal como a poesia de Jivago. O uivar dos lobos em Varikyno, que perturba o par romântico da obra, anuncia a aproximação do Inimigo – Komarov e o Exército Vermelho – no encalço de Jivago após a deserção. Os lobos são, também, presságio de morte violenta – a de Antipov.
A Lua, em Pasternak, está, também, carregada de simbolismo. O luar, reflectido na neve em Varikyno, transforma a noite numa claridade feérica, mágica e fantasmal, que “ilumina sem aquecer” ao erguer-se no horizonte da noite siberiana. Trata-se de um presságio de separação para os amantes…
Em vários momentos, ao longo do romance, a presença da Lua, sobretudo quando aureolada de vermelho, está fortemente conotada com acontecimentos trágicos, como na página 132, a simbolizar um conflito na rua entre duas facções opostas: “Por detrás do ninho de corvos, surgiu a lua, uma lua cheia, vermelha e escura, alta e monstruosa (…). E depois, no capítulo VII, antes de um banho de sangue: (…) “ia alta a Lua, e o mundo mergulhava nessa luz espessa como num charco de alvaiade (…) vielas mortas vinham desembocar na praça (…) essa noite banhada pela Lua, maravilhava como a misericórdia divina ou como o dom dos visionários”. A Lua, apesar de fascinante, parece sempre estar associada a alguma divindade misteriosa e terrível como a deusa Hécate nos antigos Gregos…

Outro ícone carregado de simbolismo é a “Sorveira gelada”, árvore de folha perene, coberta de neve e bagas vermelhas de que os pássaros se alimentam como os necrófagos – humanos e animais – se alimentam dos cadáveres sangrentos dos soldados mortos…A arvore está localizada junto à vala comum onde é executado um grupo de desertores…
É junto dessa sorveira que Jivago decide empreender a fuga em direcção à aldeia siberiana de Varikyno e a empreender uma penosa odisseia através de uma das zonas mais geladas do globo, fingindo recolher algumas bagas para, tal como os pássaros enganar a fome…
Mais tarde, é à visão, bela e fatal, de uma árvore semelhante que Jivago associa a morte de Antipov, o qual se suicida…A Jivago, as gotas de sangue sob a neve, junto ao barracão do palácio em Varikyno, lembram-lhe as bagas da sorveira brava e o sangue dos desertores executados pelos burocratas do regime.

Para Iuri, a vida termina com a partida de Lara, contra a vontade de ambos, forçada pelas circunstâncias. Para além de se ver privado da pessoa que ama, a mutilação da livre expressão do pensamento, da criatividade na escrita e na arte como “expressão de verdade individual”, obriga-o a escolher a renúncia e a sobrevivência, o que lhe tira o ânimo até para o exercício da Medicina.
Jivago não deixa de notar que, até os seus melhores amigos, submetidos e enquadrados de alguma forma no regime, são falhos no que toca à originalidade, limitando-se a repetir fórmulas decoradas baseadas em conceitos abstractos. Jivago sente que os parceiros de outrora se “venderam”.
Nem a intervenção, do misterioso irmão Evgraf, membro da polícia secreta, sempre presente nos momentos cruciais, consegue evitar que Iuri se afunde…Este consegue apenas reunir os escritos de Iuri, incluindo os Poemas a Lara e publicá-los já após a sua morte.
Afinal, na Nova Ordem, os problemas do anterior regime persistem. No fundo, o essencial não muda nunca.
Por mais revoluções que se façam, haverá sempre presas e predadores.

Cláudia de Sousa Dias

Thursday, June 12, 2008

“O Alpendre Dourado” de Tatiana Tolstoi (Dom Quixote)


O Alpendre Dourado é uma das colectâneas de contos desta escritora da ex União Soviética a incidir na temática da descrição dos comportamentos, emoções e sonhos de toda uma galeria de personagens-tipo numa geração pós revolucionária, em confronto com aquela que a precedeu. São duas gerações que coexistem, no final de uma época de transição, nomeadamente, nas décadas de 60 e 70 do século vinte, altura em que a economia soviética está já a funcionar a todo o vapor.

A esmagadora maioria destas personagens tem em comum uma profunda nostalgia face ao passado, aureolado pelo
glamour do Romantismo, patente sobretudo na maneira como se vestem – roupas em segunda e terceira mão, de há várias décadas atrás, muitas vezes produto de um espólio de guerra e objectos de arte provenientes de expropriações ou, pura e simplesmente, do empobrecimento das famílias da velha elite aristocrática ou da alta burguesia, inúmeras vezes revendidos no mercado negro.

Mas aquilo que une realmente as personagens de Tatiana Tolstoi é, principalmente, uma atitude estética que atravessa a fronteira do tempo e os revezes da Fortuna, as dificuldades do quotidiano no que respeita às condições de habitação, aquecimento, a escassez de alimentos, tendo como pilar uma tentativa de nivelar as condições económicas e dos rendimentos impostas pelo Estado. Trata-se de uma atitude estética voltada para o romantismo de um passado com pouco mais de meio século que está patente na preservação do culto da Beleza, da Arte, do Amor e da Poesia, apesar da realidade sombria e gélida do ambiente circundante.

O Alpendre Dourado acaba por ser a evocação dos desejos, dos medos presentes em todas as fases da vida humana desde a infância até à velhice, daqueles que se recusam a abdicar da poesia no coração e na alma.

Desta forma, O Alpendre Dourado e Outras Estórias coloca-nos frente a frente com figuras como Maria Ivanovna, uma nanny de outros tempos que, ao tentar educar os filhos de uma família proeminente no novo regime, tem de enfrentar a arrogância de uma nova geração que, desligada das tradições, deseja cortar radicalmente com todo um passado cultural e os valores de um mundo que já não existe. A melancolia da prosa conjuga-se com a tristeza e angústia presentes nas lendas e canções tradicionais que causam o repúdio dos mais jovens, cuja mente está voltada para o pragmatismo do quotidiano para desgosto da velha ama a qual deseja, a todo o custo, preservar a cultura secular do imaginário russo.

Por outro lado, a velha cozinheira, cujo espírito maternal cumula as crianças de mimos e atenções é mais facilmente aceite. O amor consegue atingir mais facilmente o seu objectivo do que a severidade profissional da preceptora de Bem-me-quer, mal-me-quer.

Um homem idoso, evoca a beleza da vida através da voz da cantora lírica Vera Vasilievna; ao utilizar uma escrita auditiva, a Autora usa a voz de uma diva como mensageira de um passado que privilegiava a Beleza, neste caso personificada pelo Canto. Este passado chega aos ouvidos do protagonista através de um velho e obsoleto gramofone. Velho e obsoleto como a sociedade onde outrora brilhava. Mas com a beleza canora de um pássaro exótico numa selva tropical ou na tranquilidade retemperadora de um ambiente bucólico. A prosa de Tatiana Tolstoi sugere-nos um infindável caleidoscópio de imagens que, canalizadas através da música, possibilitam a evasão do mundo cinzento e sombrio da cidade para uma infinita paleta de cores no conto Rio Okervil.

Em Doce Chura a beleza da Poesia tem como tema o Amor, trazido à luz do dia por uma idosa de noventa anos que evoca os três maridos e o amante, homens que marcam as diferentes fases de uma longa vida, que podemos identificar da seguinte forma: a fase do fausto e do glamour, no primeiro casamento; a liberdade intelectual no segundo; a repressão e as concessões em nome da paz doméstica no terceiro tendo como contrapartida a estabilidade e ausência de solidão;. E, por outro lado, o custo da oportunidade perdida de uma promessa de paixão e aventura em terras distantes e o que se deixou de fazer em nome de uma estabilidade que dura menos do que uma vida. Na velhice a companhia da Memória e da Tristeza de não saber qual seria o percurso se a escolha tivesse sido diferente, são os sentimentos que assombram o quotidiano dos últimos dia desta personagem.

Em quase todas as personagens de Tatiana Tolstoi o empobrecimento torna-se visível através da decadência exposta sobretudo no vestuário, ilustrado em frases como «As meias caídas, os sapatos rotos, o vestido negro, lustroso e puído».

O Alpendre Dourado, o mais bem conseguido de todos os contos desta colectânea, fala da abnegação e benevolência do Tio Pacha – cuja descrição física muito se assemelha á do pais da Autora - da aversão do narrador à primeira mulher deste, do imenso amor do Tio pela segunda mulher, Margarita, do melancólico fim, um estiolar suave como o apagar da vida de um pequeno pássaro debaixo da luz dourada do alpendre dourado. Este é o conto emblemático da obra por marcar o abismo que separa duas gerações: uma devotada ao amor à família e ao trabalho; a outra, desfigurada, erodida pela indiferença do Tempo que escorre pelos dedos como areia e da eterna luz dourada no alpendre onde repousam as cinzas do Tio querido.

A Caça ao Mamute fala de uma beldade, Zoya, de um amor mirrado pela diferença de caracteres e expectativas, pela apetência pelo supérfluo, frivolidades e, ao mesmo tempo, que se sobrepõe à desesperança face à falta de oportunidades.

Em O Círculo, o humor e a sátira estão patentes na descrição da forma como um sexagenário, descontente com o casamento, consegue arranjar amantes para fugir ao tédio instalado no lar pela rotina. Tudo começa numa lavandaria…

Já em Uma Folha em branco, a comédia transforma-se em drama e a tonalidade sanguínea do vermelho emerge das trevas a anunciar a tragédia. O descontentamento e a depressão instalam-se no seio de uma família urbana que vê as oportunidades de melhoria de condições de vida a serem constantemente goradas. O sul aparece no imaginário da filha de Leon Tostoi como um Éden a alcançar, um lugar de Boa Esperança, de calor e vida, sobretudo com a paisagem marítima como cenário a sugerir um desejo de fuga, evasão. Há, aqui a expressão de dois arquétipos femininos, duas mulheres alegóricas que encontram correspondente em duas mulheres físicas que personificam os dois modelos clássicos do eterno feminino: a esposa e a amante ou, se quisermos Eva e Lillith. Uma impele para a Vida, o Prazer e a Aventura a outra, por seu lado abre a porta ao tédio e à depressão, uma doença que se instala de forma quase definitiva numa apartamento sombrio e húmido que coloca em risco a vida dos seres mais frágeis que nele habitam: as crianças. A falta de uma solução alternativa para o problema implica a fuga através do sonho. Outra solução será talvez a lobotomia que impeça o Homem - ou a Mulher – de sonhar. Que faça com que o ser humano não pense e seja apenas…uma folha em branco.

Fogo e Pó mostra-nos Svetlana Pirka, a ladra de livros, uma curiosa personagem, idealista e sem defesas, inocente, que tem a particularidade de processar lentamente a informação recebida, dando sempre uma resposta desfasada em relação às mais diversas situações, numa espécie de autismo…
A cínica indiferença dos que a rodeiam é a característica colocada em evidência neste pequeno conto onde o desrespeito pela diferença e a ausência de sentimentos de solidariedade, apenas exaltam a candura e extrema sensibilidade da protagonista.

Encontro com um pássaro é outra estória belíssima onde a Inocência se encontra face a face com a magia da Sedução. Petya é uma criança ingénua que acredita em bruxas, monstros, duendes e fadas. Conhece uma mulher misteriosa, dona de uma estranha beleza, e desenvolve uma paixão infantil pela jovem, com ar de diva do cinema dos anos 20/30 – Tamila –, cujo charme sedutor de feiticeira de tempos imemoriais, envolta em lendas e naquilo que diz serem “amuletos mágicos” estimula, ainda mais, a já fértil imaginação de Petya.
Tamila passa os dias a contar histórias intermináveis sobre pássaros mitológicos e lendas tradicionais, recheadas de personagens de beleza impossível e conquista de imortalidade. Uma Sherazade da primeira metade do século XX . Mas a Vida encarrega-se de desenganar Petya, ao apresentar-se-lhe com as suas cores reais…O Destino, de que Tamila se esqueceu de lhe falar, é omnipotente.

Sonhos felizes meu filho relata as reviravoltas da vida através do percurso de um casaco de astrakan sucessivamente roubado. Trata-se de uma estória onde se evidencia a insanidade de um projecto utópico de nivelação social que entra em franca contradição com os desejos mais comuns de todas as origens sociais, à semelhança do que acontece em Sonya …

O Faquir põe em destaque a facilidade com que as pessoas se deixam iludir por uma aparência de luxo e fausto a cobrir um ídolo que se vem a revelar possuidor de pés de barro. A ausência total de valores mais profundos e intemporais está condensada numa personagem que se mostra desde o início, grotesca no seu exibicionismo. Por outro lado a idolatria das face às coisas materiais nas gerações mais jovens e a necessidade de afirmação pela ostentação de Riqueza, proporcionam uma inversão de prioridades, levando ai fechar dos olhos face a uma vulgaridade mais do que evidente.

A estória de mais uma personagem a figurar no grupo dos excluídos está patente no conto Peters, onde a obsessão de um ser mal-amado, que não interage socialmente, molda um carácter que acaba por se revelar um perigo social…

A prosa de Tatiana Tolstoi, é sempre recheada de detalhes visuais, luz e sombra, dourados e cinzentos, uma paleta de cores visuais e emotivas que nos fazem sentir como se estivéssemos diante de uma galeria de quadros que desfilam diante dos nossos olhos como um filme mudo das primeiras décadas do cinema. Ou, se quisermos, como se estivéssemos diante da janela de um comboio…

Treze pequenas grandes pinturas sociais da Rússia soviética nos anos 1920 e 1970. Treze boas razões para iniciar a leitura da obra de uma das mais geniais descendentes do Grande Leon Tolstoi…

Cláudia de Sousa Dias