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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, July 26, 2008

"Na Sombra do Javali" de Lawrence Norfolk (Planeta)


Nesta obra, nada é o que parece. Tudo são máscaras que se sobrepõem umas às outras. Em camadas. Que se vão retirando. Uma a uma. Até ficar exposto à luz do dia o verdadeiro rosto da Besta. O qual se revela e, simultaneamente, se dissolve ou se desintegra com a exposição à luz e à medida que se anunciam as trombetas do Apocalipse. Em contrapartida, os seus contornos vão-se acentuando no silêncio das trevas, numa caverna da História, onde heróis e vilões se nivelam numa selvajaria quase canibal, subjacente ao lado mais animal da condição humana.

Na Sombra do Javali é uma metáfora social e histórica, baseada no mito de Meleagro a Atalanta, que serve de base ao desdobramento do romance em duas histórias que, no fundo, são a mesma, mas contadas em três épocas distintas.

A base do romance é um triângulo amoroso, composto por dois homens e uma mulher e, os ingredientes, o amor, o ciúme a vingança e a morte, que geram a energia psicodinâmica potenciadora da acção.

Primeiro, na época que corresponde à Antiguidade, a inspirar um belíssimo poema em prosa épica – cuja autoria pertence a Solomon Memel, protagonista da acção passada no século vinte, qual adiciona a função de heterónimo de Lawrence Norfolk.
Memel reinventa a mítica caçada ao Javali de Cálidon, cuja ferocidade aterroriza as gentes locais, deixando um rasto de destruição por onde passa. Os amantes, Atalanta e Meleagro, despertam o ciúme e o despeito de Melaneu, o qual se considera o detentor de direitos adquiridos relativamente ao afecto da jovem caçadora que, em todos os aspectos, se assemelha a Diana ou Artemísia.

O estilo poético da prosa de Norfolk/Memel exalta a beleza dos movimentos das personagens de inspiração heróica, como seres perfeitos e mitológicos que são – afinal trata-se de semi-deuses – unidos, apesar das rivalidades que opões alguns deles, para destruir um inimigo comum.
A Besta, neste caso personificada pelo Javali, é uma metáfora da época antiga, transposta para o tempo presente. Ou, para o passado próximo de Solomon Memel, que remonta à segunda Guerra Mundial. O javali simboliza, desta forma, o Nazismo Alemão.
O romance trata, sobretudo, do desejo residual da luta contra a ferocidade de uma ameaça humana face ao próprio Homem, que não deixa pedra sobre pedra por onde passa.
A segunda época histórica começa um pouco antes do início da guerra, quando três crianças brincam despreocupadamente junto a um ribeiro numa província Romena -outrora pertencente ao Império Austro-Húngaro – enquanto perseguem os seus próprios sonhos: Solomon, Ruth e Jacob. Ou Meleagro, Atalanta e Melaneu, mas no século XX.
Durante a guerra, este segundo trio desfaz-se. O amor de Solomon e Ruth mantém-se ao longo das décadas, mas as circunstâncias não lhes possibilitam uma vida em comum ( inveja dos deuses ou ciúme das Fúrias?).
Jacob/Melaneu acaba por desaparecer dilacerado pelo ciúme e pela esquizofrenia.

Sol, ainda durante a guerra, foge para a Grécia. Lá, reúne-se a um grupo da Resistência local – os andartes – e conhece Anastasia Kosta, de pseudónimo Thyella, amante do jovem Xantos, na unidade chefiada por Geraxos. E acaba por projectar nos dois jovens o amor entre ele e Ruth. Imagina-os, simultaneamente, como os seus dois míticos heróis, Melegro e Atalanta, à medida que se converte, voyeuristicamente, ele próprio no caçador nocturno: Melaneu. O que se torna particularmente interessante na obra é a transição de papéis na mesma personagem, em situações diferentes. Sol vê em Thyella a imagem física e as atitudes de Atalanta, a sua guerreira vingadora. Perfeita para compor um poema épico. Mas a integridade do seu afecto por Ruth mantém-se.

No tempo presente, já no dealbar dos anos 2000, Sol é já um escritor de sucesso. O seu poema Na Sombra do Javali faz parte do currículo escolar das escolas secundárias e é objecto de várias teses por vários universitários. Ruth, por seu lado, tornou-se realizadora de cinema. Os dois encontram-se novamente em Paris, com o objectivo de transformar em película o êxito literário de Sol.

Mas, parece haver alguém interessado em boicotar o trabalho…

Na verdade, o discurso presente no poema de Solomon adequa-se como uma luva ao formato de guião de cinema, devido aos planos utilizados quer relativamente à panorâmica das montanhas da Grécia, quer às minuciosas descrições dos movimentos corporais e aos detalhes de expressões faciais, da textura da pele ou da trajectória de um braço em movimento, desde o dobrar de uma articulação, ao retesar dos músculos, ao esticar o arco, à trajectória de uma flecha…
Esta visão cinematográfica é enfatizada pela utilização do presente histórico na descrição das movimentações e comportamentos das três personagens principais: Meleagro, Melaneu e Atalanta.
Durante a caça ao javali, a figura feminina de Atalanta/Thyella é, também, olhada como uma presa, do ponto de vista do caçador nocturno (Solomon - que a olha na sombra ou, então, Melaneu, o pretendente rejeitado). Os restantes companheiros vêm-na como uma intrusa, numa empresa considerada, na cultura da Grécia arcaica, como exclusivamente masculina.

Note-se que Melaneu é, na realidade, a projecção que Solomon faz da personalidade de Jacob. E Sol coloca-se, muitas vezes, no lugar de Melaneu/Jacob ao observar a resistente Thyella. A personagem arquetípica de Melaneu, inspirada no comportamento obsessivo de Jacob, é comparada à de um caçador nocturno devido à dissimulação inerente ao carácter deste, pelo facto de nunca actuar frontalmente, mas sempre camuflado. Jacob/Melaneu é movido, simultaneamente pelo ciúme e pela inveja. Melaneu segue o percurso de Meleagro e Atalanta, à espera de atacar e ficar com o prémio para si. Jacob, tenta, além disso, prejudicar o trabalho de Ruth e Solomon por motivos idênticos.

O caçador nocturno observa os amantes dirigirem-se para a morte na gruta do Javali, à espera de os ver cair na armadilha.
A presa de Melaneu é Atalanta.
A de Jacob é Ruth.
Sol observa Thyella – aquela que vai vestir a imagem física de Atalanta no imaginário do escritor – colocando-se na pele do caçador nocturno, para melhor compreender as suas atitudes e descrever o seu comportamento. Sol acabará mesmo por agir como o caçador nocturno, ao trair os companheiros, colocando a “fera” alemã no seu encalço. Neste caso, não por vingança ou despeito, mas para salvar a pele.

A cadela (de Atalanta) farejou o cheiro que ele (Melaneu) não conseguia disfarçar. O caçador nocturno esconde os seus sinais, vigia sem ser visto, escuta sem ser ouvido. A presa não sente a mão que lhe rodeia o pescoço.

Era assim que Melaneu a cercava – paciente, atento – (…) Mas um animal assim perseguido e não caçado nunca poderia voltar a ser caçado assim e transformar-se-ia numa infindável perseguição (…). Acorrentados naquela perseguição, a presa arrastada, o caçador, como um boi para o altar…

A Fatalidade acaba por se consumar na escuridão da caverna.

Ao longo de toda a epopeia de Solomon Memel apercebemo-nos, gradualmente, não estarmos já a falar, como já foi dito, de um verdadeiro javali, mas antes da fera humana. Trata-se de uma metáfora de guerra e exortação da união de esforços no sentido de deter o inimigo comum: a Besta Humana.

No caso de Sol, a epopeia escrita a partir de um episódio da Mitologia Clássica exprime o desejo ancestral de subordinação a um Deus dos Exércitos pelo povo judeu e do desejo de mobilização bélica, no sentido de combater o nazismo. Solomon desejaria, na realidade, que o povo judeu se tivesse unido, na altura, para combater o nazismo em vez de caminhar como vítima sacrificial para os campos de extermínio pelos javalis alemães…

Um javali nasceu para destruir criaturas maiores do que ele. De baixa constituição, com enormes ombros couraçados para investir, presas para atacar o inimigo derrubado, lacerando-o depois.

A lenda é construída, posteriormente, sobre a realidade, em camadas, através da tradição oral, onde os episódios que lhe dão origem são, sucessivamente recontados. Por essa razão, acabam por preencher o silêncio da verdade e inundam de mentiras a escuridão.

Solomon escreve, a dada altura, que somos autores dos nossos próprios monstros. E esta é a primeira grande pista para o desvendar da trama propriamente dita. Saber o que se passou naquela cratera resguardada por montanhas numa das regimes mais inóspitas da Grécia…

Depois especula-se sobre o destino dos caçadores de Cálidon e passa-se à acção propriamente dita, a qual se desenvolve num alucinante vaivém entre o passado próximo dos dois protagonistas da segunda época – Sol e Ruth – e o presente. na altura em que se roda o filme na Cidade Luz.

Do passado, emerge um misterioso editor, Jacob Feuerbach, para assombrar Solomon e trazer ao de cima algumas contradições e factos por explicar…
O que tem de inédito numa obra como esta é o facto de as personagens do tempo presente passarem grande parte do tempo a comentá-la, a pretexto da rodagem do filme e do guião que lhe está subjacente.

E, claro a simbologia do Javali – um porco selvagem (um “porco nazi”), impróprio para consumo, até pelos cânones da dieta judaica. Uma fera abjecta.

O Mal habita o javali. É a causa da violência, da licenciosidade. Os que o caçam, também caçam aquilo que ele significa.

Por outro lado, as próprias personagens comentam, entre si a obra de Sol, efectuando autênticas tertúlias e, por vezes, acesos debates quando se deparam com alguns detractores do poeta judeu: os temas da sua poesia são universais porque os extraiu de uma vida representativa (arquétipos). Isto torna-se particularmente evidente nos temas tratados durante a acção passada no século XX: perda, fuga, resistência, vingança…

Enquanto Solomon retira, por um lado, da lembrança de Ruth o afecto que transpõe para o romance de Meleagro e Atalanta, transporta, a imagem física de Thyella e Xanthos po outro, os quais correspondem à imagem não só física, mas também de alguns traços de personalidade fundamentais para compor as personalidade destes dois seres lendários.

Thyella é, na realidade uma jovem algo sinistra que inspira, tanto admiração como medo, naqueles que a rodeiam. Ela faz parte dos grupos da resistência grega, nas montanhas do Peloponeso, num local chamado Agrapha – lugar não escrito. É temida pelos alemães, devido ao hábito que tem de castrar os inimigos que captura. A sua fama é de cruel como Artemísia. E a sua perícia, assim como a frieza com que executa o acto desenvolvida, durante quase duas décadas, numa aldeia onde as jovens são treinadas, desde cedo, na matança do porco, castrando-o para a carne ficar mais saborosa, assaz conhecidas entre as hostes alemãs. Daí a fazer idêntica operação a um javali das SS…

Outro dos aspectos menos comuns, numa obra do género, é a dificuldade em identificar de que lado está o bem ou o mal. Norfolk não deixa de fazer notar o colaboracionismo romeno (saudosismo do governo austro-húngaro?) com os invasores alemães, numa localidade onde as pessoas eram convocadas para comparecerem ao Palácio da Cultura para aí serem fuziladas. Por outro lado, a desvalorização da questão nazi, no início da guerra, por alguns membros da comunidade judaica ao julgarem-se imunes porque crentes na protecção do poder das amizades influentes é apenas mais um dos lados delicados da questão.

Por outro lado, pessoas mobilizadas ao serviço da resistência como Ruth eram, não raro, estigmatizadas e achincalhadas por se confundirem com os colaboracionistas.

As sucessivas regressões de Sol a uma época passada e povoada de lembranças dolorosas traduzem uma tentativa desesperada de reconstituição do filme da Memória numa tentativa desesperada de contornar as armadilhas do Tempo, da interpretação pessoal dos factos, da tentação de preencher das lacunas com falsas verdades – ou verdadeiras mentiras – por forma a encobrir o silêncio.

Silêncio que esconde traição…denúncia sob tortura……vergonha…raiva…ânsia de vizinhança. As raízes das motivações que levam alguém a escrever um livro intitulado Na Sombra do Javali.
Afinal o que há de verdade naquilo que aconteceu com “os filhos de Téstio”, independentemente de ter acontecido há quatro milénios ou há poço mais de meio século atrás?
A caverna é, na realidade, a câmara de tortura, do corpo ou da mente, onde têm lugar todos sacrifícios ao apetite voraz do javali.

A frase-chave que leva ao desvendar da intenção de quem escreve, está bem patente nas linhas que se seguem:

Acreditas que o javali se recorda das suas vítimas?!

O javali apenas se lembra daqueles que o venceram.

Para o Autor, os judeus de toda a Europa deveriam, na altura, ter-se unido e lutado, como os caçadores de Cálidon.

O último diálogo entre Ruth e Solomon denuncia a impotência e pusilanimidade daqueles que se colocam na posição de vítimas. A dada altura, todas as personagens trocaram, em determinado, momento de papéis. Até Sol. Até Thyella. Não o puderam evitar.

Terá vencido o javali, afinal?


Cláudia de Sousa Dias

Monday, July 14, 2008

"As Infernais Máquinas de Desejo do Doutor Hoffman" de Angela Carter (Dom Quixote; Rocco)


Angela Carter nasceu em Inglaterra, em 1940, tornou-se autora de vários romances e contos. Agraciada unanimemente pela crítica, obteve, inclusive, os prémios Somerset Maugham e John Lewellyn Rhys.

A audaciosa estória de
As Infernais Máquinas de Desejo do Doutor Hoffman, tem como protagonista Desidério, um ser aparentemente anódino, dividido entre o mundo racional de um Ministro inteligente mas de imaginação limitada e o mundo do erotismo e imaginação desenfreada de um cientista genial, apesar de louco, cujo intuito é o de destruir a fronteira entre realidade e ficção, sonho e desejo. Ou, a linha estreita que separa a sanidade da loucura. No final, Desidério acaba por optar pela decisão menos arriscada.

A obra foi publicada, pela primeira vez em Inglaterra em 1972 (um ano antes do internacionalmente célebre
julgamento das três marias, em 1973), chegando a Portugal apenas treze anos depois.

A escrita de Carter é, segundo os especialistas, dotada de inúmeras intertextualidades, aludindo, muitas vezes, às obras de Sade e Beaudelaire, assim como aos contos tradicionais. A Autora preocupou-se em enfatizar o ridículo das relações de dominância existentes entre homens e mulheres quando se sobrepõe ao amor, seguindo o critério da análise psicanalítica, ficando patentes uma influência nitidamente freudiana e também de Bruno Bettelheim.

Após o período turbulento vivido na infância – foi obrigada a fugir de Londres durante os bombardeamentos da
Luftwaffe refugiando-se no Yorkshire – e de uma adolescência marcada pela luta contra a anorexia, a sua produção literária passou a ser particularmente prolifica e a ser largamente difundida após divorciar-se do primeiro marido. Passa então a dedicar-se não só ao romance mas também ao ensaio, à literatura fantástica e infantil, à poesia e ao jornalismo. A inclinação de Angela Carter pelo feminismo leva-a a reescrever textos de autores como Charles Beaudelaire e o Marquês de Sade. Entre as suas amizades encontram-se autores pouco convencionais e irreverentes como Salman Rushdie.

Angela Carter foi, sem dúvida, uma das autoras mais originais do século XX. A sua escrita abarca vários estilos literários e movimentos intelectuais do século transacto, como o pós-modernismmo, o feminismo, o estilo gótico, ficção científica, realismo mágico e, sobretudo, o surrealismo.

Foi, antes de tudo, uma escritora inconformista sempre com o objectivo de romper o espartilho de normas e estereótipos bolorentos, não só no que respeita ao socialmente correcto, como também aos próprios cânones da literatura. Viria a falecer de cancro em 1992 com apenas 51 anos.

As Infernais Máquinas de Desejo do Doutor Hoffman é uma obra inequivocamente surrealista apesar de lá encontrarmos, também, elementos característicos do realismo mágico, muito embora esta última categoria não faça justiça ao rigor intelectual que contextualiza a escrita de Angela Carter. Isto porque o realismo mágico tem um pendor muito mais emocional e místico que se traduz em acontecimentos bizarros e que carecem de uma explicação lógica, mas que são “colados” num fundo realista. O lado intelectual da Autora está bem patente ao colorir a ficção com as cores da sátira, acompanhada de uma explicação sociológica dos factos, algo que não cabe na estreiteza dos cânones da categoria do realismo mágico puro.

Segundo a própria Autora «a ideia de beleza inerente ao surrealismo, é como que uma convulsão. Sente-se mas não se vê. É um catalisador do sistema nervoso central. (…) A experiência do Belo é, tal como a experiência do Desejo, um abandono à Vertigem , embora o Belo não exista como tal. O que existe são imagens e objectos enigmáticos, maravilhosamente eróticos – ou a justaposição, de objectos, pessoas, ideias, que ultrapassam o número de associações de conceitos ou imagens que somos capazes de conceber. De certa forma, o Belo é posto ao serviço do exercício da Liberdade.

Relativamente à obra aqui tratada – As Infernais Máquinas de Desejo doDoutor Hoffman –, existem duas figuras arquetípicas em conflito que simbolizam o mundo racional, do Super-Ego e das normas sociais – O Ministro – e o irracional, o mundo dos Desejos, da Líbido e dos impulsos sem restrições seja de que tipo for. Ou seja, a Anti-Razão, representada pelo Doutor Hoffman. Neste obra, estabelece-se uma guerra fria permanente, onde se constrói uma história de espionagem que pode ser lida como uma paródia aos filmes de James Bond, ao opor um inteligente, embora limitado, Ministro da Determinação – autarca (ou pároco) de uma cidade anónima, algures na América do Sul, face ao excêntrico Doutor Hoffman, uma professor de metafísica (além de físico e químico) cujo objectivo é o de colocar a cidade sob o domínio das forças da não-razão, do Irracional. A persona de Hoffman, além de notoriamente freudiana. A sua construção é, também, nitidamente influenciada pelo anarquismo de André Breton que é também, fundador do movimento surrealista na escrita.

O protagonista, um suposto 007, no meio do fogo cruzado, entre duas forças opostas, é Desidério (cujo nome significa desejo, saudade ou nostalgia em italiano), um nome mais do que apropriado face às circunstâncias, um mestiço – branco e índio - ao serviço do Ministro. Um homem calmo sem, aparentemente, grandes propensões para manifestações emocionais. É, no entanto, alguém que durante toda a obra, se abstém de emitir juízos de valor, limitando-se a descrever objectivamente as situações. Desidério corresponde à figura a que Freud chamava de “o porteiro da consciência” – o Ego no homem. Aquele que filtra os impulsos e que tenta concretizá-los dentro das normas impostas pela sociedade ou pelo Super-Ego. Tenta agradar aos dois lados, como se verifica ao longo da história. Mas no final terá mesmo de efectuar uma escolha…

Desidério começa por tornar-se no agente secreto do ministro por ser uma das poucas pessoas que não se deixa afectar pela vaga de irracionalismo que afecta a população da cidade, ao subverter a ordem “normal” das coisas.
A natureza do conflito fica definida quando o Ministro e Desidério se reúnem com o embaixador do Doutor Hoffman. Trata-se, aparentemente de uma homem efeminado – mas cujo pescoço exibe uma pele de tal modo diáfana que é possíveis “visualizar um gole de vinho da Borgonha a descer-lhe pelo esófago”. Trata-se, na verdade, de Albertina, filha do doutor Hoffman, por quem Desidério se apaixona.

O diálogo entre a jovem travestida e o Ministro coloca bem patente até que ponto ambos se encontram em campos opostos e onde a filha do cientista faz eco das convicções de Carter relativamente à Beleza, à finalidade e ao conceito do Belo, colocando a Beleza ao serviço da Liberdade, a espelhar também, uma das mais conhecidas definições do surrealismo de André Breton:

«Um fio condutor entre dois mundos diametralmente opostos, o da vigília e o do sono, da realidade interior e exterior, razão e loucura, da quietude do conhecimento e do amor, da vida pela vida e pela revolução…”

A intenção da Autora ao escrever este livro seria a de descrever como seria um mundo onde tivesse tido lugar uma revolução surrealista.
A sua personagem Desidério, para preservar a cidade do caos da Não-Razão concorda em aceitar uma missão ultra-secreta, incumbida pelo Ministro – encontrar e liquidar o Doutor Hoffman. Desidério assume-se como o inspector da Verdade e é nessa categoria que visita a estância de férias de S. para investigar o proprietário de uma show erótico para turistas que lhe poderá fornecer uma pista acerca da localização do Doutor, uma vez que este terá sido professor de física do cientista revolucionário.

A Trama: A experimentação ou A viagem de Desidério pelos sete mares do surrealismo

A acção desenrola-se ao longo de sete capítulos.
Cada capítulo é como um palácio que se desdobra em inúmeras alas, salas e câmaras, que se desdobram ante os olhos da imaginação do leitor, em imagens que correspondem às diferentes faces do Desejo.
O primeiro, A cidade Sitiada, situa-se no ambiente governado pelo Ministro da Determinação, e é de onde parte Desidério na missão que lhe foi confiada. A cidade está imersa numa onda de Absurdo onde nada segue os trâmites da lógica e tudo se encontra invertido. As cenas descritas fazem lembrar muitas vezes uma pintura de Magritte, onde se sobrepõem dois planos correspondentes a duas paisagens diversas ou, então de Dalí, onde sobressai a provocação sexual, raiando, não raro, o grotesco.
Trata-se de uma crítica viperina a um sistema político cujas componentes entram em contradição pelo excesso de zelo no cumprimento das normas e onde as mulheres não têm voz activa. Algo que faz explodir a revolução da não-razão, despoletada pela subversão daquilo a que vulgarmente se chama de Loucura, levada a cabo pelo perverso Doutor, o espelho simétrico do Ministro.

No capítulo seguinte, A Mansão da Meia-Noite, o local da acção, situa-se um pouco afastado do centro da estância balnear, onde se encontra Desidério à procura da pista que o leve a Hoffman. Acaba por encontrar, em vez dele, o seu mentor, arruinado e a ganhar a vida a exibir quadros surrealistas, verdadeiras provocações ao Pudor e à Moral. As imagens contêm ousadas associações de símbolos, no meio dos quais, figura quase sempre a imagem de Albertina. Como se a Desidério estivesse a ser lançado um isco e, simultaneamente um aviso dissimulado da periculosidade de uma flor carnívora e venenosa.

A Mansão da Meia-Noite na qual Desidério fica hospedado enquanto está na cidade assemelha-se muito ao castelo da Bela Adormecida, por se encontrar sufocada por uma selva de roseiras que lentamente, estrangulam a casa e a engolem, insidiosas, trepadoras, com um aroma intoxicante que atordoa os sentidos, fazendo lembrar a descrição de Fabrizio de O Leopardo de Lampedusa a propósito das rosas sicilianas… e da simbologia sexual a elas associadas…Todo o capítulo se assemelha a um sonho erótico com alguns dos estereótipos mais comuns das fantasias do imaginário masculino, presentes, também, na maior parte dos contos de fadas, utilizando, contudo, os símbolos freudianos…

Na casa habitam três personagens estranhíssimas: uma governanta de personalidade tirânica que parece esquecer-se que é apenas governanta, um mordomo imbecil e uma jovem e frágil sonâmbula, filha do presidente da câmara, misteriosamente desaparecido e procurado pela polícia política. Os criados tratam a jovem-quase-criança sem algum respeito, de forma desabrida. A adolescente, mesmo acordada, parece viver num mundo de sonho, habitado apenas, pela, Música, pela Poesia e pela Arte…
O desejo da governanta é apoderar-se da casa. A jovem vê-se cada vez mais envolta pela situação anelante em que a colocam os criados e envolvida na teia que tecem à sua volta, da mesma forma que as trepadeiras espinhosas das roseiras envolvem a casa.

A jovem acaba por aparecer morta e a culpa, por recair em Desidério que não conseguiu resistir ao impulso atávico que lhe condensa o desejo de desflorar uma virgem…

Recomeça, então, mais uma série de peripécias impostas pela necessidade de fugir e que o obriga a prosseguir a tarefa que lhe foi imposta.

O Capítulo intitulado A Gente Ribeirinha passa-se na selva amazónica no seio de uma remota tribo escondida no meio da selva, que recolhe temporariamente Desidério. O chefe tribal acaba por ver na sua cultura mista uma mais valia preciosa para lidar com os brancos. Um facto que acaba, paradoxalmente, opor se virar contra ele vendo-se mais uma vez compelido a fugir.

Este capítulo é revelador do interesse e Angela Carter pelas Ciências Antropológicas bem como d curiosidade insaciável da Autora em relação a outras culturas e, também, a ânsia de viajar pelo mundo. Inclui belíssimas descrições acerca da fauna amazónica e também da sonoridade fonética das tribos ribeirinhas, que quase não contactam com os caucasianos e as demais gentes da civilização urbana. A linguagem destas assemelha-se à das aves do ambiente circundante. E o sistema de estruturação familiar e social, bem como a relação com o sagrado são factores que facilitam a relação simbiótica com o ecossistema. A medicina tradicional e a alimentação característica destes povos são também mencionadas neste mesmo capítulo.

Já o capítulo que se segue – Os Acrobatas do Desejo – passa-se num circo itinerante, junto do qual Desidério opta por viajar, por lhe facilitar a camuflagem. Aqui a Autora faz notar o seu repúdio pelo chauvinismo masculino face à ânsia de domínio sobre a Mulher, ao colocar Desidério no lugar da mulher violada.

Apesar de tudo, todos os capítulos da obra acabam por ser revestidos de uma aura de onirismo, onde dificilmente conseguimos distinguir o sonho do estado de vigília. Por exemplo, a situação de violação à qual é submetido Desidério face à qual seria impossível qualquer hipótese de sobrevivência sem tratamento hospitalar, o que torna ainda mais credível a hipótese de os sete capítulos da obra serem, na realidade, o conteúdo onírico dos sonhos de Desidério.
Este, depois de fugir aos Acrobatas do Desejo e ao prosseguir o seu caminho, cruza-se com uma personagem sinistra e misteriosa – um estranho conde lituano, uma mistura de Mefistófeles, Vlad, o Empalador, e o Conde de Lautréameont.
Em todo este episódio está patente uma crítica estilizada aos estereótipos de Sade, outros dos autores que a influenciaram a escrita de Carter.

O ataque dos piratas ao navio onde viaja Desidério, o Conde e um misterioso e submisso criado, Lafleur, forma um conjunto de elementos que marcam mais um ponto de viragem na trama, estabelecendo, simultaneamente, a ligação com o cenário que se segue: a costa africana. Será aqui e no seio de uma tribo que canibais que será consumado o destino do Conde. Os acontecimentos sucedem-se e a sorte contempla, mais uma vez, Desidério, facto que corrobora a possibilidade de todas estas aventuras não serem mais do que sonhos de conteúdo sensorialmente real. Desidério aproveita o facto da tribo estar absorvida num dos seus rituais para se libertar a si e a Lafleur do jugo do Conde e também do chefe tribal, que mantém sob o seu domínio todas as mulheres da sua horda. Desidério, dispõe, neste momento da história, da possibilidade de materializar um desejo inconsciente: o de realizar uma acção heróica, permitindo à Autora assente na convicção de eliminar o paternalismo, o domínio e a tirania masculina face à situação das mulheres nas sociedades patriarcais.
A viagem é retomada, consistindo num período de pausa no desenvolvimento da trama, durante o qual se descobre que Lafleur é, na realidade, Albertina.

No capítulo que se segue, Perdidos num tempo nebuloso, ambos acabam, tal como indicia o título, por cair num lugar fora do espaço e do tempo, algures no coração da selva, no mítico país dos centauros onde a Autora enfatiza a importância da análise do mito no imaginário colectivo, à luz do pensamento de Freud e Jung, os fundadores da psicanálise. Isto porque, no país dos centauros está presente a articulação dos arquétipos feminino e masculino, a génese da necessidade de dominância masculina cujo objectivo reside no controlo da sexualidade feminina. Controlo esse ao qual está subjacente o medo da infidelidade, o receio do macho em ver-se preterido. Trata-se nada mais, nada menos, do que a vertente cultural, que se sobrepõe à biológica, que está na base da divisão de papéis segundo o género.
Ligada a esta ideia está também a materialização do pesadelo de Desidério em ver a mulher amada ser raptada e violada. São, também, abordados os aspectos da solidariedade masculina à qual não é alheia alguma inocência e, sobretudo, falta de premeditação destes centauros. Trata-se de fazer notar que por vezes esta necessidade de domínio nem sempre está ligada ao prazer de causar dor no outro como acontecia com a personagem do Conde e do Chefe tribal nos dois capítulos anteriores, mas sim na força do costume das tradições, por vezes milenares, fortemente enraizadas no imaginário colectivo.
A necessidade de punição/expiação das mulheres na cultura dos centauros, tal como acontece em quase todas as culturas – semíticas, africanas e algumas indo-europeias – ocorre, frequentemente, devido a uma interpretação do mito que favorece os interesses da classe dominante a qual utiliza o carisma dos sacerdotes junto das massas para o legitimar. Daí que, em quase todos os mitos de origem, seja atribuída à mulher a introdução do elemento do Mal e da Destruição, desde Pandora a Eva, sobretudo a partir do momento em que os homens se apercebem que não são as mulheres as únicas responsáveis pela geração de novos seres. Torna-se, a partir de então, urgente garantir a certeza masculina em relação à paternidade dos sucessores uma vez que está em causa a sucessão da chefia de um território…a partir de então, prolifera toda uma série de cultos ligados à fertilidade, envolvendo sacrifício humanos e rituais de expiação, desde a antiga Suméria, Assíria e Babilónia, até ao sacrifício do fundador do cristianismo.
E é precisamente na altura em que a tribo dos centauros se prepara para usar o casal humano num destes ritos sacrificiais, que ocorre mais uma reviravolta de forma ao casal escapar ileso.
Finalmente após mais um período de transição, os dois amantes acabam por chegar ao castelo do Doutor Hoffman, que Desidério reconhece como parte de um dos quadros da loja do velho professor de física, na estância de férias de S.

Chegamos, assim, ao capítulo ou sonho materializado final – O Castelo – onde nos são dados a conhecer dois cenários: a casa propriamente dita, o cenário aparente, superficial – ou seja, a parte visível do iceberg freudiano da consciência – e o interior da montanha, o qual simboliza o inconsciente, contendo os desejos mais inconfessáveis do ser humano. Que é, na verdade, a parte do cérebro humano que o Doutor Hoffman deseja que domine o mundo e que deverá ser sustentada pela eroto-energia, isto é, aquela que se liberta aquando da realização do acto sexual – a libido freudiana. Para tal, Hoffman mantém uma multidão de casais aprisionados em câmaras e drogados, de todas as raças e etnias de forma a produzirem o máximo de eroto-energia possível...

Esta sátira/fantasia tem como objectivo espelhar a revolução sexual dos anos 60/70, com a difusão dos novos métodos contraceptivos, conjuntamente com a libertação das amarras de cariz moral e religioso a que estavam sujeitas as mulheres. Mas ligado ao desejo de Hoffman de domínio do mundo através do controlo/estímulo da sexualidade humana pela injecção de químicos para o efeito, está também, subjacente a crítica a um certo desejo de revisionismo histórico em recriar e manipular a realidade pela alteração da percepção dos seres humanos, caindo precisamente no extremo oposto.

O capítulo final visa, também, parodiar a manipulação das massas pelos políticos ou ideólogos totalitários quer estes se sirvam da religião, da razão ou da ciência para o efeito, numa mais do que clara alusão ao nazismo…ou à guerra do Vietname… Por outro lado, a Autora faz também notar ser a alternativa do racionalismo capitalista ou tecnocrata, representado pelo Ministro, se revela um mundo assaz estéril, onde não há lugar para a imaginação ou para a criatividade.
No fundo, o que Angela Carter pretende é mostrar o ridículo da divisão de um mundo delimitado pelo “eixo do bem” e “eixo do mal” uma vez que não existe uma divisão real entre “bons” e “maus” mas antes entre “mais fortes” e mais fracos” ou vencedores e vencidos. Onde, no caso de serem os homens os mais fortes, caberá às mulheres serem submetidas às diversas situações de tortura…

A obra de Carter pode ser considerada, por tudo o quanto já foi dito, como sendo genial, embora contextualizada na época em que foi escrita e no movimento estético onde se enquadra: o Surrealismo e o pensamento de Sigmund Freud, o qual pode e muito bem ser identificado com o próprio Doutor Hoffman, o qual comanda os sonhos e o pensamento da humanidade através do controlo do inconsciente.
Uma obra desconcertante e, ao mesmo tempo, fascinante como um filme de David Lynch. Ou de Fellini.
Uma escritora que é, sem dúvida, uma referência marcante no panteão dos grandes autores do século XX.

Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, July 01, 2008

"Era uma vez um Rapaz" de Nick Hornby (Teorema)


Um best-seller de um autor britânico, adaptado ao cinema, a falar de relações afectivas e novos tipos de estrutura familiar, que despontaram, já na década de 1990 e que, ao mesmo tempo, explora problemas como a socialização e o desenvolvimento de competências sociais nas crianças e jovens, bullying e diferentes tipos de violência em contexto escolar. Também o consumo das drogas leves em idade precoce e nos adultos, misantropia, individualismo na sociedade de consumo e suicídio são outros temas abordados pelo autor na obra.

Uma multiplicidade de temas de conteúdo dramático que é ,no entanto, tratada pela ironia inteligente do típico humor britânico, transformando um livro de teor, à partida, melodramático, numa divertida comédia, a raiar a sátira, que coloca em evidência as contradições presentes na vida familiar e social da Europa da viragem do século.


Era uma vez um rapaz trata, sobretudo, das diferentes formas de integração dos indivíduos, num país que é considerado como fazendo parte daquilo a que se chama a vanguarda da cultura ocidental na última década do segundo milénio. Algumas das contradições a envolver os ideais de liberdade preconizados pelos anos 1970, como a liberalização do consumo das drogas leves e da sexualidade feminina, estão ainda por resolver no final do século XX. Consequências que se fazem sentir, sobretudo, nos mais jovens onde se incluem Marcus e Ellie, que exibem comportamentos que exprimem as consequências menos positivas dessas mesmas contradições. Enquanto isso, os adultos, distraídos com os próprios conflitos existenciais, ignoram frequentemente as reais necessidades dos mais jovens.

As Personagens

Will, o protagonista adulto, é um celibatário convicto, a viver de rendimentos e a usufruir de uma existência dourada que lhe permite gozar, a tempo inteiro, do prazer de cuidar da aparência, comprar aquilo que gosta, seduzir as mulheres que se parecem com estrelas de cinema – pelo menos enquanto estas não se apercebem da sua frivolidade. Assume um estilo de vida hedonista a fazer lembrar a dolce vita dos antigos membros da corte imperial romana. A situação financeira de Will permite-lhe descurar o desenvolvimento de competências sociais, intelectuais e, sobretudo, profissionais. A falta de integração num grupo de trabalho, faz com que a rotina diária de Will seja composta por longas horas solitárias que preenche com o cuidado da logística da casa, compras, com o cuidado da imagem para além da observação das tendências da moda e dos novos estilos musicais. Will tem por hábito recorrer a complicados esquemas de acção para se aproximar das pessoas, usando de efabulações, meticulosamente planeadas – toda a conduta desta personagem envolve uma cuidadosa e detalhada premeditação – tecendo uma teia à volta delas, como uma aranha. Chega mesmo a inventar um filho para se aproximar da mulher que pretende seduzir.

No entanto, o aspecto fashion de Will torna-o dotado do perfil ideal para ser o consultor de imagem ou disk jockey. Se realmente quisesse e precisasse de trabalhar. Will reúne, no entanto, as condições que, mais tarde, farão dele o facilitador da integração social de Marcus – o jovem protagonista da história -, numa fase específica da vida deste.

Marcus tem doze anos de idade. Mudou-se recentemente para Londres com a mãe. É um adolescente com inteligência bastante acima da média, gosto musical refinado, embora moldado pela mãe. É um bom aluno, responsável, obrigado a amadurecer precocemente devido à vivência do drama existencial da mãe, a qual tenta o suicídio no auge de uma depressão.

Ao contrário de Will, Marcus é um jovem que veste de forma démodé. Fora de moda é, também, o seu gosto musical a chamar a atenção dos alunos mais conflituosos – bulliers – que se divertem a persegui-lo, a ameaçá-lo de extorsão, a achincalhá-lo. A mãe insiste em alhear-se do problema.

A amizade com Will, que o incentiva a ser mais autónomo, vem em seu auxílio, no sentido de torná-lo exteriormente “menos diferente” em relação aos colegas. Com a cultura musical transmitida por Will – sempre ao corrente das novas tendências – Marcus consegue conquistar a amizade de Ellie, fã dos Nirvana e um dos elementos mais rebeldes do liceu. A jovem passa a tratá-lo com condescendência e algum paternalismo.

Marcus tenta encontrar em Will uma figura paternal, por sentir que este pode facilitar-lhe e muito – devido à identificação com o estilo de vida adolescente – a integração no seu grupo de pares.

Will, por seu turno, apesar da “alergia” a crianças acaba por sentir-se sensibilizado pela autenticidade e ausência de premeditação de Marcus.

Fiona, a mãe de Marcus, tem 38 anos e está encarregue do sustento da casa e do filho, após o divórcio. Inteligente e culta, revivalista da cultura hyppie dos anos 1970, pretende transmitir os mesmos ideais ao filho. Trabalha como terapeuta musical, com crianças autistas.

O ex-marido é um homem indolente, não pensa muito nas consequências do próprio comportamento – chega a enrolar um “charro” diante do filho e a pedir-lhe para ir buscar os utensílios que necessita para o fazer. Fuma haxixe como quem come torradas ao pequeno-almoço.

Rachel, a namorada de Will, é uma jovem bela, culta, inteligente e sofisticada, extremamente dinâmica no trabalho, por quem se sente fascinado.

Ellie, a jovem de quinze anos, amiga e aliada de Marcus, é uma garota rebelde e provocadora, que tenta chamar a atenção através de comportamentos que, por vezes, caem na alçada da conduta anti-social. Ellie provém de uma família onde os laços sociais e afectivos se estão a desintegrar e não sabe como agir. Acaba por exteriorizar a ira, germinada internamente pelo facto de o comportamento dos progenitores não ser aquilo que normalmente se espera, usando, muitas vezes, de violência não só contra alguns colegas mas também através de alguns actos de delinquência.

O Final

O desenrolar da trama aponta algumas tendências face à evolução das diferentes personagens.

Marcus torna-se um jovem mais integrado no grupo de pares mas, simultaneamente, mais distante do mundo dos adultos. Desenvolve a tendência inicial para tornar-se, em muitos aspectos, mais adulto do que os adultos com quem convive. Começa, no entanto, a fumar, ao mesmo tempo que se reveste de uma carapaça que o afasta da família, marcando a entrada na chamada Linha de Fractura da Adolescência. Apesar de tudo, já se consegue defender ou, pelo menos, evitar as situações de conflito ao desenvolver a inteligência emocional nas relações com o grupo de pares. Torna-se um jovem que acredita, sobretudo, nas relações de amizade e na ligação com vários grupos. O potencial para fomentar laços entre as pessoas, mesmo entre os adultos com quem convive, é uma característica que faz com que pouco a pouco, se torne mais seguro de si.

No tocante a Will, o Autor deixa os leitores entreverem a sua evolução através do olhar de Marcus e da sua extraordinária capacidade analítica. A perspicácia do jovem permite-lhe compreender que a relação entre Will e Rachel poderá não durar. Rachel é uma mulher cujo trabalho ocupa um lugar muito importante na própria vida ao passo que Will é um homem voltado sobretudo para o lazer. Uma discrepância que poderá levar à ruptura do relacionamento. Ao mesmo tempo o enfraquecimento dos laços sociais de Will, um ser cronicamente centrado em si mesmo, poderá acentuar uma já moderada dificuldade de integração e manutenção das poucas relações sociais do quotidiano ao longo do tempo.

Era uma vez um rapaz é, por tudo quanto foi dito, um retrato social inteligente da sociedade contemporânea que nos leva a olhar mais atentamente e de uma forma mais esclarecida as novas tendências de comportamento no mundo que nos rodeia.

Cláudia de Sousa Dias