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Saturday, July 04, 2009

“O Segredo da Trapezista” de Óscar Málaga Gallegos (Teorema)


Quem vive um dia de inocência e alegria é imortal

Uma estória que apela ao sonho, à fantasia e ao impudor, na exploração de tabus que não deixa de causar um pouco de incómodo.



O livro O Segredo da Trapezista é dedicado a duas mulheres que serviram de inspiração ao Autor como ele próprio afirma na sua dedicatória:

à minha avó cujo amor me alimenta a insensatez; a Xi Pei cujo amor me inventa

Trata-se de um romance de época, cuja acção decorre na Lima do sec. XIX, em 1931, que envolve a recordação de um dia mágico: o dia em que o circo chegou à cidade. A entrada triunfal de uma companhia de circo à beira da falência provoca o espanto e a curiosidade na população de uma cidade pacata, cuja rotina transforma os seus habitantes em seres apáticos e indolentes. Trata-se de um momento de cor e alegria na vida quem, até ali, sempre se movimentou num cenário com a mesma tonalidade monocromática.

O director, num acto desesperado para encontrar uma solução financeira para o seu empreendimento, de forma a evitar o fantasma da miséria, decide juntar o útil ao agradável ao deixar vir ao de cima o seu talento natural de proxeneta e, simultaneamente, aproveitar para satisfazer algumas pulsões sexuais proibidas, pelo que utiliza um pretexto ou motivo socialmente justificável a servir de atenuante como sendo o de “salvar o circo”.

Passa, então, a instruir sexualmente a trapezista, loira e adolescente, nas lides sexuais perante a impassibilidade dos restantes membros do circo, paralisados pelo medo da fome que os torna impotentes para reagir ao comportamento tirânico do patrão.

O livro é uma paródia à situação de crise mundial, estilizada através do recurso a uma alegoria de uma sociedade que tem no comando líderes ineptos a ocupare os postos de chefia de sectores fundamentais para a estruturação e articulação dos diversos agentes económicos, que dispõem dos seres anónimos como marionetas, eliminando os afectos espontâneos e o direito inato à procura do prazer e da felicidade.

Outro dos sectores visados pela crítica mordaz e pelo humor negro do Autor é a classe dos militares e, particularmente, a pusilanimidade dos generais que estão mais preocupados com a ostentação da farda e outros sinais de distinção social do que com o brio no trabalho e a finalidade do mesmo.

A prepotência dos mesmos militares face ao povo índio, na defesa dos interesses das classes privilegiadas e do colonialismo é outro tema explorado no romance, assim como o jornalismo ao serviço do Poder instituído. Esta última classe é particularmente visada pela língua viperina de Óscar Málaga Gallegos o qual classifica os jornalistas de propaganda do regime como “putas ao serviço do Governo”.

E para enfatizar ainda mais a puerilidade da figura do general emproado, o Autor cria a personagem Dom Juan de Alcazár y Benavente, um sujeito fraco, impotente e misógino que é sexualmente abusado pela mãe na tentativa desesperada para o transformar num homem. Com a introdução do elemento incesto, o Autor pretende dar um soco no estômago na sociedade pseudo-politicamente-correcta de Lima, sobretudo na hipocrisia instituída, composta por senhoras falsamente bem-comportadas e machos falsamente viris.

Por outro lado, é exaltada a dimensão do sonho e, também, da imaginação, da fantasia e inocência, envolvendo os diversos elementos do circo, que estão, no entanto, sob o jugo do director que os manipula como se de simples bestas se tratassem.

A atracção sexual espontânea que se estabelece entre a Trapezista Gémea Loira e o Comedor de Fogo sob o olhar benevolente do pachorrento paquiderme que os observa pelo canto do olho está à margem de tudo isso como sinal de independência e insubmissão.

Inocentes são também os habitantes de Lima os quais, como crianças que continuam a ser, muito depois de atingirem a idade adulta, continuam a deixar-se fascinar por seres estranhos, aberrações que só no circo conseguem encontrar um lugar e um sentido para a vida, tal como a mulher barbada, os anões ou o Homem mais Forte do Mundo.

O circo ficará para sempre gravado na memória das crianças da época, apesar dos estrangulamentos económicos e da escassez de dinheiro que atravessa. Os seus palhaços são evocados, muitas décadas mais tarde, pelos velhos que eram meninos na época quando compram caramelos com forma de palhaços em qualquer lojeca da esquina.

A repressão e o recalcamento da revolta

O staff do circo nutre, na realidade, um certo desprezo para com D. José, o Director do Circo.

E o Anão Grande urinou em cima da cadeira ainda quente que D. José ocupava sempre”.

O elefante, sendo a grande atracção do circo, conseguindo sempre mobilizar a atenção do público, devido à força, ao carácter selvagem e, simultaneamente dócil, que desperta sempre a simpatia alheia. Também o carácter independente de quem não se deixa levar por elogios fúteis de bajuladores que se acotovelam diante do aspecto pesado e algo grotesco da estranheza que causa “um animal que tem orelhas de planta silvestre, nariz de serpente, pernas de árvore e olhos de coelho”, ocupa um lugar simbólico muito especial na trama:

O circo era como o elefante: desconhecido, rugoso, selvagem, terno (…) a continuara a levar pelo mundo a sua irremediável solidão de ser diferente, descomunal e único (…) as pessoas vêm ao circo para se encherem de nostalgia perante a ideia de que um dia foram mais fortes que a natureza (…); o circo é a única igreja, a única religião que os homens têm na alma”.

Em relação à história e cultura Russa, introduzida pela farsa que a trapezista loira terá de interpretar a pedido do dono do circo, poderão ser encontradas algumas incongruências, propositadamente introduzidas de forma a haver coerência entre a ausência de quase total conhecimento da história e cultura europeia pelas gentes simples do Peru no sec XIX que nunca puseram os pés no velho Continente, como quando se referem a Hércules como o “Rei dos Romanos”.
Curiosamente a presença de alguns anacronismos nos nomes citados faz pensar que a obra pretende traçar um paralelismo entre as épocas que marcaram a evolução económica e política dos últimos séculos e que se reflecte directa e indirectamente no quotidiano do cidadão comum.
O Homem mais Forte do Mundo é outra das grandes atracções do Circo, está dividido entre o amor que sempre desde sempre pela mulher barbada e por uma sereia, mulher feminina, de aspecto delicado mas que exala um atroz odor a peixe. Trata-se de uma parábola, de contornos surrealistas a representar a utopia do amor ideal e a presença de um amor concreto a corresponder às pulsões terrenas dos sujeitos.

D. José, o dono do circo é, apesar dos seus defeitos, inquestionavelmente um líder que molda a personalidade do seu staff à sua própria imagem e semelhança tal como se vê pelo comentário do Comedor de Fogo para a Trapezista Loira: “No circo, todos somos parecidos com D. José”.

Mas em contrapartida “as ilusões nunca se apagam, transformam-se em recordações, papéis nos bolsos, e então já não vives a perseguir ilusões mas como um velho a proteger recordações, a encher os bolsos de coisas que não disseste”.
A nostalgia da juventude perdida de D. José e o amor são os elementos chave do romance, um dos principais vectores da estória a envolver os personagens, mobilizando-os.

Outro dos símbolos utilizados por OMG é o legado das floreiras deixado pelo pai de D. Juan de Benavente, o militar pusilânime violado pela mãe – mais uma parábola, desta vês referente à fragilidades de quem cede a todas as pressões vindas da sociedade, neste caso representadas pela família cujo expoente máximo de repressão está condensado na figura da mãe manipuladora através de uma relação edipiana.

Por outro lado, as floreiras como herança do pai, representam não o mecanismo de manutenção do património familiar mas, também, a necessidade de conservação da cultura e do património natural do Peru, ao invés de delapidá-lo tendo em vista apenas o lucro a curto prazo. Trata-se, também, da aspiração à imortalidade por parte de um indivíduo que dedicou a vida a construir algo e que, enquanto estiver intacta a sua obra, é como se se mantivesse viva uma parte de si próprio. As plantas das floreiras são como que o prolongamento da vida do pai de D. Juan Benavente. É por essa razão que, ainda vivo, cuida das floreiras “com o mesmo amor que os monges taoistas destilavam o suco luminoso do cinábrio”. Aqui o Autor não consegue deixar de demonstrar o imenso amor pela cultura oriental que se manifesta numa erudição refinada onde deixa transparecer a voz velada do narrador não participante.

A Trapezista Loira é seleccionada por D. José de forma a fazer-se passar por princesa russa com o objectivo de seduzir Dom Juan o qual, acabará por financiar o circo salvando-o da falência. Um dos aspectos mais cómicos da obra é a ignorância manifesta pela mesma Trapezista Loira e restantes personagens acerca do idioma russo. Ignorância que tenta a todo o custo disfarçar com um patético e minimalista arsenal de palavras que se reduzem a meia dúzia de figuras de proa do regime soviético num escandaloso anacronismo!

A classe política acaba, também, por ser visada pelo Autor ao referir-se à grave crise ministerial, ocorrida em 1831, mas que voltaria a repetir-se no último quartel do século XX e cujos efeitos se fazem sentir, ainda no século XXI, adquirindo esta um carácter crónico e assumindo, ao mesmo tempo, uma faceta endémica que se traduz no marasmo a que é sujeita a vida dos cidadãos…

Dizem que acontece muito neste país, é uma epidemia…”

Dom Juan apaixona-se pela pseudo-virgem loira que é também uma falsa princesa russa. Esta vê-se a braços com a dificuldade crescente em manter a máscara. A desculpa é a do desconhecimento da língua para não falar com o noivo. A ausência de quase total de diálogo entre o casal também proporciona momento de alguma hilaridade, servindo para camuflar a quase total ausência de refinamento na jovem. Uma característica que é notada por quase todos os que habitam a casa de D. Juan de Benavente excepto pelo próprio. A Trapezista Loira revela, no entanto, uma garça e agilidade inerente à profissão desempenhada no circo evidenciando-se em cada gesto ou movimento de graça felina.

Por outro lado a paixão da “Princesa” pelo Comedor de Fogo torna-se cada vez mais difícil de ocultar…

Já para a mulher barbada só o amor paternal é verdadeiramente desinteressado. É por essa razão que está convencida de que é filha do elefante, por este afagá-la com a tromba “com a mesma ternura de um pai”: “ Aos pais, por maior que seja o seu amor, imensa que seja a sua ternura, só lhes é permitido tocar delicadamente nas filhas…”

O ponto de vista do amor absoluto para esta estranha mulher não deixa de ser sublime apesar de desconcertante:

Porque nós, as mulheres, prendemos a viver com os homens, a amá-los por serem tontos, por terem sonhos ridículos, aspirações medíocres, aprendemos a dividir o nosso amor em mil quartos e abrigamos os homens num deles, o mais pequeno, o mais húmido, o único que procuram e também aprendemos a viver com os outros quartos vazios e, de vez em quando, a receber surpreendidos visitantes que têm a chave, sem que nós algumas vez lha tenhamos entregue, mas o nosso maior sonho é um dia conhecer um ser tão pouco homem, mas tão parecido com Deus, que possa ocupar os nossos dez mil quartos de amor…”
Nenhum dos personagens masculinos da estória se aproxima dessa categoria, nem o Comedor de Fogo ou mesmo O Homem mais Forte do Mundo. São simplesmente seres humanos, inocentes, bravios e rudes que tentam ocupar o lugar que todos ocupam.

Como já foi referido, D. José é o modelo de conduta dos personagens masculinos do circo desta estória, como afirmou o Comedor de Fogo Romântico. E D. José é um homem incapaz de ensinar o amor a alguém, fixando-se apenas pelo ensinamento da “arte de salvar” o circo. Usando de competências sexuais, obviamente. No entanto há uma altura em que a trapezista loira deixa de ser capaz de exercer “a arte de salvar o circo” por estar apaixonada pelo Comedor de Fogo Romântico.

E, segundo o narrador, “As pessoas apaixonadas apagam todas as luzes do planeta para acender aquela que ilumina o rosto da pessoa amada. E atravessam o espelho para se juntarem a uma multidão de seres cegos que devoram com prazer as suas ilusões”. Que se apagam à medida que amadurecem e se transformam em recordações.

Com uma certa dose de cinismo de uma alma materialista D. José afirma: “Recorda toda a tua vidinha. A Verdade é apenas um problema técnico”, sendo que a memória comporta sempre uma certa dose de ficção.

O desgosto de amor do Comedor de Fogo Romântico, já no final da estória, num acesso de loucura, leva-o a tomar a resolução de por fim aos planos de D. José para as gentes do circo e, particularmente para a trapezista loira, fazendo lembrar um pouco o episódio de Samsão no templo de Dagon…

Um belo, chocante, provocador e sublime romance de um autor nos chegou trazido pelas “Correntes” do Atlântico que vêm desaguar à Póvoa.

Esperemos que mais vezes.


Cláudia de Sousa Dias

4 Comments:

Blogger Maria said...

Tens o dom de espicaçar a curiosidade literária de quem por aqui passa ^-^

beijos

8:50 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

obrigada!

é mesmo esse o meu objectivo


:-)))


mas a entrevista que lhe fiz na póvoa e que está publicada no rendez-vous é ainda mais interessante do que este texto...


estou mortinha é por ler a poesia dele...


csd

6:55 PM  
Blogger isabel mendes ferreira said...

imortal seja a tua capacidade rara de ler.



e nós seguimos a tua essência-gratos.



beijo de bom dia.

muito.

9:26 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

obrigada, Isabel!

:-)


mais uma vez.


csd

11:06 AM  

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