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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Sunday, February 28, 2010

Doutor Copérnico de John Banville (Dom Quixote)


John Banville nasceu em Wexford, Irlanda, 1945. Foi jornalista, editor e revisor literário, tendo escrito o seu primeiro romance, intitulado Long Larkin, em 1970. Da sua obra, destacam-se os romances Nightsprawn, Birchwood, Kepler” – vencedor do prémio Guardian da Literatura, 1981 – The Newton Letter, Mefisto e The Book of Evidence. Doutor Copérnico, é o primeiro volume de uma trilogia respeitantes a cientistas e matemáticos e da qual fazem parte Kepler e The Newton Letter. Recebeu em 1976 o Prémio James Tait Black Memorial.
John Banville escreve por vezes também com o pseudónimo de Benjamin Black.

John Banville é conhecido por possuir um estilo classificado pelos especialistas de “frio e objectivo” racional e uma criatividade de inspiração. A sua maior ambição é, no entanto, dotar a sua prosa da mesma densidade e profundidade da poesia. Um certo lirismo, associado a uma aristocrática ironia e um pungente sentido da perda nos seus romances lembram segundo algunscríticos, Lolita de Nabokov, apesar de as suas influências literárias se estenderem também a Beckett e a Joyce. (Fonte: Wikipedia)

Doutor Copérnico é uma viagem ao imaginário de um astrónomo que revolucionou a visão do Homem acerca do Cosmos, ao redimensionar seu lugar no Universo, pela substituição do modelo de representação ptolemaico, o qual colocava a Terra no Centro do Universo, pela visão heliocêntrica do sistema solar. Copérnico obteve alguma resistência por parte da igreja católica, uma vez que o modelo anterior ao seu era condizente com alguns fenómenos descritos pela Bíblia e postos em causa pelo modelo posterior.

Nicolau Copérnico (Koppernick) é originário da Alta Silésia (Alemanha), cuja família se ramifica até à Cracóvia (Polónia).

A Relação do Protagonista com as restantes personagens

Ao lermos o livro verificamos que Copérnico, como não poderia deixar de ser, ocupa o lugar central na trama. Mas , mais do que isso as prestantes personagens gravitam à sua volta. Trata-se de um recurso utilizado por Banville que reproduz , assim, na construção da narrativa, o modelo conceptual que é imaginado pela personagem, para o Universo. Copérnico ocupa, por isso, na trama, o lugar que corresponde ao sol no sistema solar sendo as restantes figuras humanas os planetas - aqueles com quem se relaciona directamente – e satélites, aqueles com quem não tem um contacto directo.

O Tio Lucas, o cónego e, mais tarde, bispo torna-se o patriarca da família, após a morte dos pais de Copérnico e seus irmãos. O futuro matemático mantém uma relação de dependência com o Tio, uma vez que é este quem gere os negócios – segundo ele, em ruínas – da família, decidindo o destino dos sobrinhos.
Com Bárbara, a irmã mais velha, o jovem Copérnico estabelece, nos primeiros capítulos, uma relação de cumplicidade e refúgio afectivo. Uma ligação que se vai esboroando com o tempo, devido à separação imposta pelo Tio Lucas e pela ausência de convívio diário.

Katharina torna-se a esposa de um homem de negócios, ávido e calculista, acabando por se lhe assemelhar, o que precipita o afastamento de um irmão com quem tem muito pouco em comum.

Mas é com Andreas, o irmão mais velho, com quem tem a relação mais intensa, marcada por uma doentia miscelânea de sentimentos ambivalentes, onde se fundem amor fraternal, ódio, piedade, compaixão e desprezo. Andreas acompanha de perto o seu percurso na Polónia e, depois, em Bolonha, juntando-se-lhe na atribulada e perigosíssima travessia dos Alpes, em direcção ao Piemonte. Andreas será a sombra que irá acompanhá-lo durante grande parte da sua vida. Mais propriamente durante a juventude, até perder a beleza angelical, destruída pela sífilis. Mesmo após a sua morte, a presença de Andreas será uma constante na vida de Copérnico, surgindo-lhe nos momentos mais inesperados, como um anjo das trevas, assolando-o com dúvidas, untuosamente destiladas.
Copérnico, como todo o jovem com capacidades excepcionais dentro dos padrões da época, é alguém que, desde muito jovem, manifesta um acentuado gosto pelo estudo e uma curiosidade insaciável e um grande à-vontade na aprendizagem da lógica e da gramática.

Andreas prefere passar o tempo nas tabernas e bordéis que abundam na Itália do Renascimento, envolvendo-se em rixas e conspirações.

Banville gosta de jogar com o contraste entre um corpo belo e uma alma hedionda e vice-versa. Andreas pertence definitivamente ao primeiro tipo. O carácter inverso é incarnado por Wodka, o tímido e eruditíssimo professor de Nicolau, em Cracóvia.

O Cónego Wodka era um velho de trinta anos. Era assustadoramente feio uma figura atarracada, gorda e bamboleante, de cabeça globulosa cara marcada pelas bexigas e uma boca pequenina, encarnada e húmida.

Só os olhos, desconsolados e brilhantes, revelavam a alma triste e magoada que o corpo escondia.

Trata-se de uma das personagens mais simpáticas do romance. Esta atitude benevolente por parte do leitor deve-se ao facto de manifestar uma genuína estima pelo discípulo.

Cuidado com esses enigmas, meu jovem amigo. Exercitam o espírito mas não ensinam a viver.

O cónego alerta, assim, o seu pupilo Copérnico, então adolescente, para o lado menos são da personalidade humana: as pulsões da inveja e a obsessão pelo poder. Wodka assume, nesta fase, uma função sibilina mas cujas palavras são desvalorizadas tanto pelo físico que ostenta como pelo nome, o qual, por si só, não consegue impor respeito .

Até o seu nome, tão absolutamente inadequado, conspirava para fazer dele um palhaço, papel a que parecia ter-se resignado, pois fora com ironia que adoptara o nome de Abstemius.
Já a beleza luciferina de Andreas é como a chama maligna que acompanha o irmão até ao momento derradeiro em que este se despede da vida.

Iluminado pelo luar, o rosto pálido, magro e implacável de Andreas inclinava-se para ele sorrindo sombriamente.

A Trama

O abismo entre aquilo que o homem é capaz de conhecer, os limites da capacidade de entendimento humano e a realidade propriamente dita, cuja dimensão é inabarcável, é o tema central do livro. É a partir destes dois pólos que se estabelece a tensão ou conflito que se mantém ao longo da narrativa e impele ao seu desenvolvimento. Este foco de tensão pode resumir-se a uma frase:

Todas as coisas não passam de nomes, mas o mundo em si é uma coisa”.

Do ponto de vista de Copérnico, enquanto personagem de Banville,

…o saber não era já compreensão. O seu espírito, enveredando já apreensivamente por caminhos perigosos e até então inexplorados precisava de uma atmosfera leve e delicada de uma sensação de ar e espaço, que uma pequena Cidade como Cracóvia não lhe podia proporcionar (…).

No primeiro ano que aí passou, Nicolau assistira às batalhas, renhidas e sangrentas, entre escolásticos húngaros e humanistas alemães.

Nicolau está, no entanto, atento às notícias que vão chegando das descobertas dos Povos hispânicos que lhe chegam aos ouvidos e contribuem largamente para sustentar o seu modelo teórico da concepção do universo.

Nicolau de Banville

A personagem Copérnico criada por John Banville apresenta-se-nos como um cientista dotado de uma capacidade de aquisição de conhecimento e sentido crítico, como já foi mencionado, fora de vulgar. No entanto, trata-se de um homem tímido, que receia emoções fortes e se refugia no conhecimento. Isto porque a erudição transforma em ordem dócil o pavoroso tumulto e o caos do mundo exterior à sua pessoa.

O mundo académico de Cracóvia torna-se pequeno para o génio de Copérnico que se vê na necessidade de emigrar. O destino escolhido é Itália e a Universidade de Bolonha. A travessia do Alpes é penosa, dura, cheia de peripécias. E a vida dos viajantes é posta à prova a a partir do momento em que tomam consciência de que, no grupo, está infiltrada uma quadrilha de criminosos violentos. Roubo e violação passam a fazer parte da memória de Copérnico relacionado com a mesma travessia. A surpresa e horror surgem mediante a capacidade de anestesia emocional enquanto observa a cena cuja dureza se assemelha a um quadro representativo de uma paisagem humana em tudo similar ao Inferno, pintado por Hieronymous Bosch.

Também a descrição da beleza gélida da paisagem alpina perece exprimir mais a sensibilidade primitiva do Autor para as artes plásticas, antes de se dedicar à literatura:

A região era irreal, uma Ultima Thule, gelada e ardente (…). Até o clima era estranho, dias imensos, azulados, vítreos, de Primavera alpina, um sol impiedoso, todo ele luz, quase sem calor, céus transparentes, trespassados por cumes cobertos de neve.

Itália

Em Bolonha, Nicolau Copérnico prossegue a segunda etapa dos seus estudos. Apesar de estranhar o clima da cidade, o temperamento exuberante o timbre estridente das vozes italianas e a sua desorganização, sente-se no seu meio. Isto porque Bolonha parece fervilhar de exaltadas discussões científicas. É convidado a participar em tertúlias, algumas inclusivamente algo estranhas, envolvendo gnósticos, pitagóricos, com um leve cheirinho a maçonaria. Não se envolve muito em questões metafísicas. O seu ramo é a Matemática e a Astronomia. No entanto, em termos sociais, para ele Bolonha era uma cidade de loucos e figuras grotescas e no entanto ele não passava despercebido com a sua longa capa e o seu rosto severo e fanático (…). Detestava-a e detestava o seu calor omnipresente, o cheiro a podridão, o alarido infantil, a indolência, e corrupção, a desordem.

E…

Sentiu uma repentina saudade dos fins de tarde do Norte, límpidos e cor de nácar, cheios de silêncio e de nuvens.
A cidade de Bolonha é, em termos sociais, muito mais compatível com o temperamento de Andreas que se sente, aí, como um peixe na água – mesmo após seguirem caminhos diferentes, o aparecimento (casual ou não) de Andreas no caminho do irmão dá-se sempre numa envolvência de maldição, sobretudo após a perda da beleza angélica, minada pela sífilis e pelo álcool.

A presença feminina em Doutor Copérnico

Anna Schillings, uma parente distante que Copérnico acolhe como governanta no mosteiro que dirige em Frauenburg, numa fase em que se encontra já bastante entrado na idade, servirá de pretexto aos seus detractores que pretendem atirá-lo para o esquecimento, ou descreditá-lo. Sobretudo os luteranos e a Inquisição. A mulher torna-se, entretanto, indispensável como governanta e, mais tarde, como enfermeira, quando, já no final da vida, Copérnico já não pode nem mesmo querendo, dispensar a sua presença. Segundo a própria Anna, os boatos maliciosos acerca da natureza das suas relações eram o género de coisas postas a circular pelos santinhos de pau carunchoso.

Estrutura Dramática

Na primeira e segunda parte do romance, temos um narrador neutro, que vê a acção desenrolar-se como que de uma janela, através de um binóculo – ou de um telescópio – e através da qual perscruta o comportamento das pessoas, como se observasse corpos celestes.

Na terceira parte dá-se, no entanto, a introdução de uma voz discordante, à qual está subjacente uma quebra de ritmo, patente num discurso que se torna bastante mais acelerado em relação ao do narrador anterior. Esta mudança provém da alteração do ângulo de visão. Este segundo narrador participante, não sendo omnisciente, passa, no entanto, a ser parte integrante da acção. Rheticus é um velho professor que, na velhice, relata o seu breve contacto com o grande génio matemático e astrónomo que foi Copérnico, durante a juventude, altura em que Copérnico entrava já na numa fase visivelmente decadente em termos físicos. O então jovem estudante Rheticus via em Copérnico um ídolo, um modelo a quem simultaneamente admira e inveja, julgando-se muito melhor do que ele. Rheticus elogia Copérnico na sua presença, mas passa a vida a depreciá-lo nos seus escritos/diários. Deixa, também, entrever um forte antagonismo em relação a Anna Schillings, pela importância de que goza na vida do Mestre. No entanto, a aversão de Rheticus estende-se às mulheres em geral, parecendo manifestar uma preferência algo suspeita pela companhia de jovens efebos.

Os últimos dias da vida de Copérnico são, segundo Rheticus, assolados pela depressão, devido à tomada de consciência da proximidade da morte:

A brevidade da vida, o embotamento dos sentidos, o torpor da indiferença e das ocupações inúteis. Só muito pouco nos permitem conhecer e com o tempo o olvido (…) rouba-nos até esse pouco que sabíamos.

Rheticus afirmava, ainda no final da terceira parte, que o cepticismo corroía a alma de Copérnico, destruindo-lhe as ilusões de fama e de glória em Frauenburg, o mosteiro onde se refugia:

Frauenburg matou o que de melhor havia em mim, a minha juventude e o meu entusiasmo, a minha felicidade e a minha fé… (…) Daí em diante nunca mais acreditei em nada, nem em Deus nem no Homem.
A morte do cientista vem apenas confirmar aquilo que se intui das atitudes de Rheticus e da sua relação com Copérnico ser apenas fruto de um interesse motivado pelo desejo de reconhecimento no meio intelectual e não proveniente de um afecto genuíno.

A notícia não me comoveu nem um pouco: vivo ou morto Copérnico já não fazia parte dos meus planos.

Andreas Osiander, luterano e reitor da universidade onde Rheticus estudava, destitui-o de qualquer responsabilidade na pela publicação da obra do seu Mestre. Este afastamento teve como pretexto uma conduta sexual ambígua, reputação de que Rheticus culpa Nicolau por este lhe ter colocado no caminho, como mensageiro, o belo efebo Raphäel, seu escudeiro, despertando fortes suspeitas nos moralistas luteranos. Rheticus julga-se vítima de uma cabala urdida por Osiander, pelo Cónego Dantiscus, rival e admirador de Copérnico, o Cónego Giese e o próprio Copérnico que lhes teria fornecido os meios para macular-lhe a reputação facultando-lhe a proximidade do belo adolescente Raphaël.

Com a quarta parte, regressa o primeiro narrado . Banville brinda-nos com mais uma espectacular descrição de uma paisagem gelada e da claridade feérica, mágica, da Primavera na costa da Alemanha do Norte.Um cenário quase mitológico com que ilustra os últimos dias daquele que foi médico, astrónomo e matemático.

A experiência do AVC é contada de forma violenta, como uma explosão de dor, a que se segue e descrição da experiência da humilhação de depender dos outros para as necessidades mais básicas. O momento do AVC é apenas o início de uma via dolorosa que marca um calvário que medeia o momento em que se dá a trombose e a morte propriamente dita: um corredor que desemboca na antecâmara da morte, povoada de sonhos visões e misticismo.

Do outro lado, das visitas, a realidade aparece-nos como feia, hedionda, devido ao cheiro da sujidade, quase permanente, devido ao acumular das disfunções do organismo, que anunciam a proximidade da morte. Só a dedicação de Anna constituiu um bálsamo apaziguador para o doente. O que a faz conquistar o respeito daqueles que, antes, os perseguiam a ambos.

O segundo AVC traz, já, a privação da fala, juntamente com a visita inoportuna de Osiander. Mas tudo deixa de ter importância. O protagonista sente, no entanto, a dor da tomada de consciência de que o melhor da vida se lhe escapou por entre os dedos.

As últimas páginas do romance são dedicadas à forma como se sente escorregar para o abismo, inexorável e como que sugado para um buraco negro, marcado por um terror pânico, povoado de alucinações:

As paredes da torre tinham perdido a solidez, eram planos de escuridão, de onde irrompiam agora, elevando-se no ar com as suas asas turvas, a grande ave metálica, deixando atrás de si um rasto de chamas e levando no bico a esfera ígnea, não já sozinha mas precedendo um bando de outras aves da mesma espécie, todas em chamas, todas cintilantes, terríveis e magnificas, irrompendo das trevas, soltando guinchos.

Harpias fúrias ou erínias, as aves anunciam ao medo da dor ou do mundo desconhecido que se avizinha. No derradeiro momento, Copérnico volta a sonhar com o irmão, o qual surge agora como um anjo das trevas ao mesmo tempo que se apercebe das movimentações no quarto por parte daqueles que preparam as cerimónias fúnebres.

E através de um diálogo imaginário com o irmão, Andreas, que lhe surge a Copérnico num sonho, o Autor parece cria uma intertextualidade com a última cena de A última tentação de Cristo de Nikos Kazantzakis. A conversa entre ambos o momento alto da narrativa e a chave que dá sentido ao romance.

Por último, a paisagem do Báltico adquire, no momento em que abandona a existência terrena, os tons de azul e verde. O verde das tílias, cor que, na escrita de Banville, é associada ao amor e o azul do céu e do mar associado à imensidão, à ideia de infinitude.

Um romance belo, intenso, complexo e apaixonante.

Cláudia de Sousa Dias

Monday, February 22, 2010

“O Carteiro de Pablo Neruda” de Antonio Skármeta (Teorema)




O livro foi recentemente reeditado pela Teorema, aproveitando o período durante o qual António Skármeta manifesta a intenção de ficar uma temporada em Portugal, com o objectivo de escrever um novo romance.


O Carteiro de Pablo Neruda comporta duas narrativas: a paixão telúrica do carteiro Mario Jimenez e Beatriz, a jovem filha da dona da taberna da povoação próxima de Isla Negra onde se refugia o poeta Pablo Neruda.


A paixão ou o desejo adolescente de Mario Jimenez é a mola que impulsiona, dando vida e movimento à narrativa principal, entrelaçando-se nesta como uma liana. Esta mesma narrativa principal ou narrativa de primeiro plano é a estória do desenvolvimento da amizade entre o carteiro, um homem simples e o cultíssimo poeta humanista que foi Pablo Neruda. Mesmo aqui, o Autor consegue criar uma intertextualidade com a obra poéticade Neruda pela preferência temática direccionada às classes trabalhadoras, como por exemplo na Ode al hombre sencillo.


Mário, quase analfabeto ou possuindo apenas competências de leitura que apenas lhe permitem descodificar palavras escritas, debate-se com uma dificuldade: como declarar-se à mulher que ama e mostrar-lhe o que sente, quando mal consegue articular uma frase diante dela, receando, cada vez mais, expor-se ao ridículo. Decide, então, recorrer à eloquência do Poeta e à invulgar expressividade de Neruda para conquistar a amada. A amizade cresce à medida que o poeta mostra ao carteiro, oriundo de uma família de pescadores, os vários níveis de compreensão da leitura, iniciando-o na magia da escrita criativa e, em particular, da poesia.


O próprio Antonio Skármeta foi um jovem tímido, apaixonado platonicamente pelas belas actrizes da época (anos 1960), mas que experimentava uma grande dificuldade em aproximar-se das jovens com quem convivia diariamente. Por outro lado, Skármeta desejava escrever livros e guiões de cinema procurando, simultaneamente, fazer com que Neruda lhe escrevesse o prefácio do seu primeiro livro. Da mesma forma, Jimenez tenta, no romance, propor ao Poeta que lhe escreva as cartas de amor a Beatriz.


Por outro lado, no segundo plano narrativo, o intenso erotismo que se coloca na relação entre Mário e Beatriz cria um intenso contraste face tranquilidade subjacente aos termos em que se estabelece a amizade entre o carteiro romântico e o Poeta. Este contraste entre os dois planos narrativos, aliado ao estilo fluido e coloquial de Skármeta, confere um ritmo trepidante à história que se lê com o mesmo prazer com que se saboreia um gelado a uma temperatura de 40 graus. Da mesma forma, o tom coloquial e a precisão com que descreve os movimentos das personagens tornam a escrita de António Skármeta especialmente talhada para uma adaptação ao cinema, patente em todo um trabalho voltado para a construção de uma narrativa dinâmica, com muito poucos momentos de pausa e sem dar margem a dispersões ou divagações como é comum num romance.

Paixão e Poesia


Em O Carteiro de Pablo Neruda a intensidade de sentimentos é demonstrada pelo erotismo e voluptuosidade colocados no discurso da personagem que é Neruda quando fala do amor. Voluptuosidade que é depois projectada depois pela imaginação do Autor que é Skármeta, no olhar de Mario Jimenez, quando focado em Beatriz. A mesma voluptuosidade Nerudiana cheia de teluricidade é expressa no cantar do espectáculo da Natureza - tema tão ao agrado do Poeta de quem se diz incarnar a alma do Chile – e que é captada no gravador de fita magnética de Mario Jimenez para que o Poeta possa ouvir os sons chilenos durante uma estadia forçada em Paris. O mar, por exemplo, para este Neruda (re)construído por Skármeta, exprime aquilo que é para o Poeta a força indomável da paixão. O mar entra no ritmo da poesia de Neruda como a maré, sendo disso exemplo diálogo entre o carteiro e o Poeta onde aquele lhe explica a noção física de ritmo e o significado de metáfora.


A personagem de Mario Jimenez consiste num homem simples – un hombre sencillo – quase analfabeto, mas com a capacidade invulgar de se deslumbrar com a beleza das palavras e das imagens que estas passam para os homens. Esta sensibilidade deve-se, talvez, a uma natureza melancólica, contemplativa e introspectiva. Daqui só poderia nascer uma forte amizade, pois trata-se de dois seres românticos, com uma apetência especial para fruir o Belo, que muito os aproxima dos gregos do período clássico, e que encontram na solidão o espaço de que necessitam para a interiorizar.


A personagem D. Rosa, dona da taberna e mãe de Beatriz representa o pragmatismo, o quotidiano e a realidade. Mas é, apesar de tudo, uma mulher capaz de se comover com os sonetos de Neruda que lia quando jovem, apesar de, no dia a dia, não dar largas à veia romântica,devido às responsabilidades acumuladas: gerir os negócios, atender os clientes, educar uma filha e zelar pela sua segurança. Em D. Rosa os sentimentos são refreados pela cautela que surge do medo da miséria.


Estilo


Os diálogos são marcados pelo nonsense, provocadores e povoados de ironia. O gosto pelo erotismo e o idolatrar da imagem do corpo feminino, incarnado na personagem de Beatriz, transformam a Mulher num objecto de culto, tal como a outra personagem com o mesmo nome o foi para Dante Alighieri. Um facto que é aludido num dos muito diálogos entre o carteiro e o poeta, que se servem da poesia para canalizar a devoção a um amor erótico sublimado. Em toda a obra, a beleza é extraída através da expressividade máxima, retirada das palavras que, em toda a sua simplicidade, são dirigidas ao coração dos homens.


Enquadramento Histórico


A estória O Carteiro de Pablo Neruda é dotada de valor documental por se enquadrar num período de convulsões políticas e económicas da História contemporânea do Chile e das circunstâncias em que se dá a morte de Pablo Neruda.
A obra de Skármeta só vem confirmar que, no Chile – tal como na maior parte dos países da América Latina –, a poesia não é do domínio exclusivo de uma elite, como se verifica na cena que descreve o funeral de Neruda e de que existem registos televisivos a confirmar a sua veracidade.
Mas na altura em que Neruda agoniza devido ao avanço da doença, isolado na sua casa em La Isla Negra, encontra-se perfeitamente lúcido em relação à situação política do país, envolvendo a morte de Allende e dos abusos de poder perpetrados por Pinochet. Apercebe-se das consequências no quotidiano das pessoas e da mudança da direcção dos ventos ideológicos, que assola o país como um maremoto. É nesta altura que escreve o livro Jardim de Inverno de onde sobressai o poema Outono, que anuncia um período de obscuridade num país onde a livre expressão dos pensamentos, sem o espartilho da censura, só pode ocorrer “na sombra”, isto é, na clandestinidade.

É neste contexto que se cria, na obra de Skármeta, a dramática cena do assomar à janela, nos últimos parágrafos antes do epílogo, quando o doente se levanta da cama para contemplar, pela última vez, o sinistro mar revolto, ameaçador.

Os esbirros de Pinochet preparam-se para lhe invadir a casa mas o Poeta já só consegue sair de ambulância, a caminho do hospital, de onde já não sai com vida. A cena do funeral, descrita no epílogo é emocionante e exibe um ligeiro travo a vingança, pela ironia do quadro constituído pelo desfile do féretro, diante de uma população que declama, em uníssono, os poemas revolucionários de Neruda por entre a ameaça das metralhadoras do exército do regime e a protecção das câmaras de inúmeras estações televisivas, vindas de todos os cantos do mundo. Pablo Neruda, Prémio Nobel da Literatura, tinha-se tornado um símbolo nacional, apesar do regime ideológico desfavorável.

Nesta cena final, perfeitamente cinematográfica, Skármeta eleva o romance à categoria de um épico, uma vez que a atitude das massas que nela intervêm serviu para edificar o mito e dar veracidade ao adágio de que “Neruda não é chileno, o Chile é que é Nerudiano”.


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, February 09, 2010

“Estação Carandirú” de Dráuzio Varella (Palavra)



No ano de 1989, o médico psiquiatra Dráuzio Varella decide elaborar um estudo sobre a transmissão e evolução do vírus da SIDA, observando os doentes infectados da Penitenciária do Carandirú, uma das maiores da América do Sul. Para tal, passa a exercer clínica naquela instituição, em regime de voluntariado, no estado de S. Paulo.

A partir do primeiro dia em que atravessa o limiar da porta de entrada daquele edifício, descobre um mundo paralelo: uma ilha, onde se reproduzem a miséria e todo um sistema de relações económicas clandestinas, com a conivência das autoridades, e todo um leque de trocas sociais e emocionais em tudo semelhantes à organização social existente “lá fora”.


Ao atravessar o portão que dá acesso ao edifício administrativo para tratar das formalidades burocráticas, o Autor depara-se com a frase que lhe é atirada para os olhos e que melhor parece descrever o ambiente local:

Cadeia é um lugar povoado de maldade.

Na realidade, trata-se de um verdadeiro inferno, físico e real, formando um planeta onde imperam o ódio e a desconfiança, que emanam de uma luta impiedosa pela sobrevivência. Um lugar onde, no entanto, os afectos surgem entretecidos de forma insidiosa e paradoxal, como a resistência em tempo de guerra.

O sentimento inicial de desconfiança, experimentado pelos detidos em relação ao médico, evidencia-se também, entre os funcionários que mudam bruscamente de assunto quando este se aproxima Estes últimos receiam tratar-se o investigador de alguém que trabalhe para a Amnistia Internacional, a quem apelidam de “líricos”, sem contacto com a realidade, pela insistência em olharem de forma unilateral os direitos dos prisioneiros. Estes receiam, por sua vez, que um estranho, mesmo sendo um médico, os coloque numa situação embaraçosa ou delicada, por mais bem-intencionadas que sejam, em consequência de um comentário ingénuo.

Mas do ponto de vista dos funcionários, todos o cuidado parece ser pouco para conseguir manter os detidos sob controlo: dentro da cadeia, uma porta só é aberta quando a seguinte e a anterior são fechadas. O lugar exibe um slogan que parodia uma frase do evangelho:

É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar preso na Casa de Detenção.

A qual está longe de ser o Reino dos Céus. Os funcionários têm de vestir calças escuras ou jeans para se distinguirem dos prisioneiros. Entre estes últimos há todo um sistema de estratificação social: aqueles que são trabalhadores no cárcere e exercem as mais variadas funções, dentre as quais variam, também, os graus de prestigio atribuídos a cada um deles.
Aqueles que colaboram ao exercer algum trabalho administrativo (monitorizado) são quem usufrui de estatuto mais elevado e gozam de uma vida mais tranquila, ao trabalharem na secção onde chegam os outros presos para fazerem o registo.

A despersonalização


Aos detidos, quando chegam ao estabelecimento prisional, são-lhe retirados quaisquer objectos pessoais e são obrigados a vestir o uniforme prisional. O objectivo é não sobressair em relação aos demais. É-lhes também atribuído um rótulo, consoante o artigo do código penal correspondente ao crime cometido. Os violadores e pedófilos são os prisioneiros mais odiados, tendo de ser despachados para o piso 5, para não correrem o risco de serem mortos. Este ódio radica no medo de colocarem em risco as mulheres e os filhos, durante as visitas. Há também aqueles que pedem para trabalhar em troca da redução da pena.

A cela infecta, apelidada de “masmorra”, alberga aqueles cuja saúde está minada por doenças infecciosas, como a tuberculose ou a SIDA, grande parte deles já em estado terminal. Devido ao receio de contágio, estes detidos são mantidos isolados e em condições de insalubridade inimagináveis.

No estabelecimento prisional do Carandirú não existia, então, um serviço especializado em Psiquiatria, sendo a medicação desta especialidade ministrada por médicos de Clínica Geral e igual para todos, desde depressivos a esquizofrénicos ou psicopatas.

As condições sanitárias também não eram melhores: em alguns pavilhões, no auge da sobrelotação, só era permitido aos presos defecarem dois dias por semana.

Lá fora o roubo era, para muitos deles, o primeiro prémio da lotaria: ou seja, a porta que permitiria o estabelecimento do próprio negócio. O livro é escrito sob a forma de relato, numa perspectiva que muito aproxima o narrador de um investigador, ligado ao jornalismo mas também às ciências do comportamento. A postura é a de um antropólogo: um observador neutro que nunca emite juízos de valor e descreve comportamentos, hábitos e rituais de forma objectiva, sem procurar influenciar o leitor. No entanto, a sensação com que se depara, ao entrar naquele lugar, é a de que são todos inocentes ou vítimas das circunstâncias, mesmo tendo cometido crimes cujo paroxismo de violência nada fica a dever ao mais sanguinário thriller norte-americano.
Nesta perspectiva, encontramos em Estação Carandirú alguns aspectos linguísticos curiosos tais como o de apelidar um saco de comida de Jumbo. Este era trazido das famílias, vindo directamente (ou não) da famosa cadeia de supermercados.
Dentro do aspecto da sociologia que se liga à psicologia, o Autor nota que os suicídios são mais frequentes de manhã ou ao amanhecer, após longas noites assoladas pelos demónios do desespero.
O investigador registou, também, recorrendo a entrevistas, o facto de as mesmas noites terem ficado mais calmas após terem permitido visitas internas. Um aspecto comovente que decorre desta mudança é a preocupação com a limpeza do local e op asseio pessoal que se acentuam nos dias em que os detidos recebem a família. O ritual das visitas na fila de espera é uma das cenas do livro descritas com maior precisão e detalhe, permitindo uma quase perfeita visualização da mesma, assim como a percepção das inúmeras nuances dos sentimentos quer das visitas, que vão ver os seus entes queridos à cadeia – a esposa, a namorada, os filhos, a mãe do detido – quer dos próprios detidos. Trata-se de uma quebra da rotina, uma lufada de ar fresco e sol, vindos do lado de fora. Outro aspecto assinalado é a corrupção endémica dos funcionários, que fecham os olhos ao tráfico de droga dentro do estabelecimento.

O estudo da Sida e das formas de propagação da doença

Perseguindo os objectivos a que se tinha proposto inicialmente, o autor deste relato verifica existirem indivíduos que contactam frequentemente com o vírus mas não o contraem, como é o caso de um dos travestis que se dedica ao exercício da mais velha profissão do mundo.
Por outro lado existem formas de propagação inimagináveis, sobretudo entre os toxicodependentes, cuja alteração do estado de consciência não lhe permite tomar o mínimo de precauções. Passa, então, a dedicar-se ao tratamento este grupo de risco atacando em duas frentes: no tratamento propriamente dito e na prevenção.

A partir de então, o respeito e o afecto pelo médico crescem de forma exponencial. O que não impede que, por vezes, se aproveitem da ingenuidade ou do desconhecimento deste acerca das artimanhas praticadas lá dentro. Afinal, trata-se de malandros de profissão...

A ordem e a limpeza

Verifica-se, também, que a organização da limpeza é um elemento estruturador fundamental para a manutenção da ordem dentro da cadeia. A corporação dos “faxineiros” é constituída pelos líderes carismáticos, isto é, pelos elementos mais respeitados da instituição. Esse respeito advém-lhes da observância das normas que suportam o código ético entre os seus elementos. Por exemplo, aquele que denuncia um colega, nunca fará parte dessa mesma corporação. Aqui, também não são aceites os violadores. Os homossexuais estão, também, proibidos de mexer em comida.

Os funcionários administrativos da mesma instituição prisional olham este tipo de estrutura interna e informal segundo uma visão darwinista das relações humanas entre prisioneiros: “Os mais hábeis dominam os mais fracos. Tiram o partido da selecção natural.” No entanto, “o diálogo da Administração com a Faxina é fundamental para a manutenção da ordem e o controlo da violência.

Uma das conclusões que se podem extrair, após longos meses de observação, é a de que “ na prisão, nem tudo o que parece é” e o comentário mais inocente pode ter consequências imprevisíveis. Um visitante pode cometer, inadvertidamente, uma indiscrição que chegue aos ouvidos de um administrativo, comprometendo um número considerável de indivíduos.

Os defensores dos direitos humanos e membros da Igreja são malvistos pelos funcionários, por estarem convencidos que estes só se interessam pelos direitos dos criminosos, nunca das vítimas.

Observam, ainda, que o verdadeiro criminoso é bem comportado dentro da cadeia porque quer sair o mais rápido possível, para voltar ao activo.
A Administração daquele estabelecimento prisional estabelece, normalmente, alianças com os líderes.
Um factor importante para grande parte dos prisioneiros é a crença no divino, o que lhes traz conforto espiritual. No filme, a cena de conversão à fé poderá ter o seu quê de patético mas é perfeitamente entendível e verosímil. O prisioneiro sente a necessidade de obediência a uma entidade superior, de saber que se cumprir as normas, será absolvido. E a religião proporciona-lhes esse conforto. Um colo para se refugiar. Um Pai.

O Pavilhão Amarelo, aquele em que os prisioneiros procuram refúgio, é para onde geralmente se escondem aqueles que correm risco de vida, que fogem ao ódio dos colegas: os violadores, assassinos, pedófilos. Os “amarelos” dão, assim, o nome ao pavilhão, por perderem a cor no edifício sem janelas devido à falta de sol como se requer num Pavilhão de Alta Segurança.

Inquietante é a constatação, para quem já é hóspede da instituição há longa data, de que quando o ambiente está demasiado calmo na cadeia é sinal de que algo de grave se irá passar, pelo que muitas vezes, a solidão acaba por ser uma boa estratégia de sobrevivência, como é o caso do velho Jeremias. Lá fora, espera-o uma vida nova. Sem laços que o liguem à cadeia.
Entre os travestis, a competição também é intensa. Competição pela ostentação. Por outro lado, a união entre eles torna-se fundamental, por uma questão de sobrevivência.

As cenas mais dramáticas do livro são aquelas em que se assiste a uma sessão de “chuto” na sala onde os toxicodependentes se drogam; a mordidela do rato, na página 268 e claro, a cena do massacre na prisão, lembrando um filme sobre o holocausto nazi.
“Estação Carandirú” é um livro que, juntamente com o filme de Hector Babenco, testemunha aquilo que há de melhor e pior na natureza humana: a solidariedade e o altruísmo, na maior parte das vezes rodeada por um oceano de cinismo e desrespeito pela vida humana.


Cláudia de Sousa dias