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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, January 31, 2011

"A Senhora Sócrates" de Gerald Messadié (Quetzal)


Um romance policial, com a Atenas do período da democracia de Péricles como pano de fundo.

É no ambiente do Areópago na Atenas onde se discute livremente a vida da pólis e das relações com as cidades e potências económicas vizinhas que ocorre o violento assassínio, às portas da casa de Sócrates, que é o objecto deste romance. O facto desperta a indignação de Xantipa, a esposa do filósofo, que surge na obra como sendo de origem modesta e nível cultural reduzido, mas dona de uma acutilante espírito dedutivo e incisivo poder de argumentação. Nela, o desejo de justiça é acentuado, sobretudo depois de conhecer o filho da vítima, uma criança desprotegida, a qual mobiliza o seu instinto maternal.

Inspirada por Némesis - a deusa da vingança, temida pelos próprios deuses, pelos seus castigos terríveis e implacáveis - Xantipa irá, de indício em indício, perseguir a Verdade na busca dos culpados da morte de Filípides. No entanto, o conhecimento público da verdade incomoda muita gente, comprometendo personagens ligadas às altas esferas do Poder. Uma história tão antiga e tão actual. Sobretudo porque o móbil do crime se prende com razões políticas, nomeadamente, com um conflito inter-partidário que envolve democratas e oligarcas e ao qual está, indirecta e inconscientemente ligado, um homem fatalmente belo: Alcibíades, que é, nada mais nada menos do que o sobrinho de Péricles, o primeiro estratega da Cidade.

Na segunda parte do livro, já depois da morte de Péricles, a Xantipa visionária é vista pela população da Cidade como uma sacerdotisa oficiosa de Némesis, uma vez que se empenha em divulgar, em linguagem sibilina, a previsão de que a ruína de Atenas chegará pela mão de Alcibíades.

De facto, a perda da supremacia da Ática face às outras cidades do mundo grego da altura, tem, de uma forma ou de outra, não só a ver com as sucessivas traições de Alcibíades historicamente documentadas, mas também com a instabilidade política que grassa dentro da própria Cidade, posicionada, devido ao seu esplendor, sobretudo cultural e influência política, num alvo preferencial da cupidez dos invasores pois, segundo o próprio autor, "o mel atrai as moscas".

É pela mão de Alcibíades que, primeiro os espartanos e depois os persas, invadem Atenas. O vaticínio de Xantipa cumpre-se e a maldição de Némesis também.

Finalmente, na terceira parte, assiste-se ao triunfo do hedonismo, à procura desenfreada dos prazeres e ao primado do económico a sobrepor-se ao ideal, como sempre acontece em épocas de crise.

Sobrevivem apenas aqueles que, não sendo necessariamente medíocres, por vezes, são mesmo os detentores de um singular espírito crítico e de análise, mas possuidores da capacidade de camuflagem do camaleão, isto é, aqueles que têm a lucidez de permanecerem na sombra como Taqui e Demis, os eternos frequentadores da taberna de Aristides. Para estes, é necessário saber resistir à tentação da procura do protagonismo (hybris) que cabe aos deuses atraindo dessa forma a inveja (phtonos) dos deuses e dos homens medíocres, que é o que está na origem da queda do marido de Xantipa. Pessoas como Sócrates, Protágoras e Anaxágoras, cujo pensamento ultrapassava, em larga medida, a época em que viveram e cujas opiniões jamais poderiam deixar alguém indiferente não têm a mesma sorte uma vez que nunca poderiam ocupar uma posição de segundo plano. Daí serem objecto das intrigas e forçados a acabar os seus dias no exílio.

Por outro lado, a desilusão de Sócrates face à conduta dos chefes responsáveis pelo governo da Cidade-Estado, nomeadamente de Alcibíades e da sua heteria, fá-lo mergulhar num estado depressivo e a não evitar as armadilhas que o levaram à condenação à morte. A desistência da luta pela vida por parte do filósofo ao submeter-se à condenação à morte quando poderia, de facto, optar pela fuga e pela vida no exílio, deve-se ao facto de os seus ideais não se enquadrarem na sociedade da época e a certeza de que, fosse ele viver para onde fosse, a história repetir-se-ia.

A escrita de Gerald Messadié, autor de "L´Homme qui devient Dieu", " Histoire Générale de l'Antisémitisme" "Moise", "David", "História geral do Diabo", e "História geral de Deus", é provocadora e original, seduzindo o leitor logo na primeira página ao fazer a apologia da beleza feminina, imediatamente seguida da sua antítese, utilizando generosamente o tempero de um humor ácido.

Podemos observar, também, o requintado nível de lucidez durante o jantar em casa de Aspásia, eminente cortesã e amante de Péricles, através de um controverso diálogo entre os convivas e Protágoras, um dos condenados ao exílio por desrespeito aos deuses, fazendo lembrar um pouco o banquete de "Thaïs" de Anatole France. É possível, também, apercebermo-nos de que, nem todas as figuras que conquistam a imortalidade devido ao seu talento são, necessariamente, íntegras, mas por vezes, como é o caso do dramaturgo Aristófanes, facilmente afectado pela Phtonos.

Destaque para o brilhantismo do capítulo intitulado "Advertência aos viajantes", no qual o autor explica a mentalidade do povo grego da altura bem como as suas fragilidades, para além de fornecer ao leitor as pistas que o farão adivinhar o destino da cidade e da desagregação do Império.

Por último, já no epílogo, os comentários corrosivos de Diógenes, o Cínico, deitam por terra a Teoria das Formas de Platão,. Trata-se de uma figura com um papel mais importante do que aquilo que parece já que transmite a sensação de estarmos perante o espectro, a sombra de um Sócrates rebelde, "enlouquecido", ou vindo das sombras, a desmascarar toda uma corrente de pensamento pretensamente socrático, reescrita por alguém que utiliza o prestígio de um filósofo preterido pela sociedade para construir a sua própria reputação sem ter, na devida altura, lutado pela sua defesa. Platão não pode surgir mais diminuído nesta obra de Messadié, pela voz de Xantipa.

Um livro que é uma obra prima da literatura contemporânea e que reconstrói um mundo desaparecido, mas que sempre ocupará um lugar preponderante na história da civilização ocidental.

Para o autor "Atenas poderia ter sido eterna. Mas os gregos eram homens." O que só confirma o axioma de todo o império contém em si o gérmen da sua própria destruição.




Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, January 18, 2011

“Os Impostores” de Santiago Gamboa (ASA)



Santiago Gamboa é um Autor de origem colombiana a residir, actualmente, em Roma. Após ter-se dedicado à carreira de jornalista decidiu enveredar pela carreira literária, abraçando por inteiro a escrita ficcional.

A personagem central de Os Impostores tem um percurso de vida algo semelhante ao do Autor, uma vez que, a personagem central Suárez Acevedo é, também, um emigrante de origem colombiana que se dedica ao jornalismo mas na realidade ambiciona tornar-se escritor, enquanto reside na Europa, neste caso, em Paris. O Autor constrói uma trama com quatro protagonistas, mas a qual a posição nuclear é ocupada pela personagem que é o espelho do próprio Santiago Gamboa o qual aposta na criação de uma divertida sátira que mistura os géneros romance de aventuras e espionagem, numa paródia aos filmes de James Bond e mas com nítida influência da estrutura e temáticas relacionadas com a investigação científica típicas de romance como "O Fiel Jardineiro" ou "A Casa da Rússia" de Le Carré. O discurso narrativo é uma fusão muito bem conseguida entre acção e relatos, narrativas tendo como pano de fundo as vozes dos respectivos narradores e a crítica literária, com múltiplas referências e alusões, feitas pelos vários protagonistas a que se juntam ainda momentos de ousado erotismo, um algo perverso sentido de humor e intriga policial.

Cada narrador persegue um objectivo pessoal e exprime o seu ponto de vista pessoal, o qual está associado à viagem que cada qual se dispõe a empreender a Pequim. O único elemento comum é um vivo interesse num antigo manuscrito chinês, responsável pela discórdia que, no final do século XIX e início do século XX, fora lançada entre uma facção rebelde de um movimento intelectual e filosófico chinês de tendência mística– os Boxeurs – e a presença europeia – sobretudo francesa – no Oriente, que terá culminado num banho de sangue.

O tempo presente da acção situa-se já em pleno século XXI, altura em que já não se ouve falar dos “boxeurs”, cuja organização parece ter-se fragmentado, transformando-se em micro células de carácter pacífico. No entanto, um pouco inesperadamente, surgem algumas facções de carácter nacionalista que parecem não olhar a meios para obter o documento, recorrendo mesmo à violência se necessário.

Ao longo da obra, o Autor parece ter a preocupação em demonstrar como a capacidade em decifrar mensagens escritas, seja através da descodificação de uma língua pouco acessível como é o caso do código linguístico chinês, seja através da identificação dos múltiplos significados ou interpretações de um texto sobejamente conhecido, ao exercício do Poder. Para tal, utiliza quatro personagens de forma a que, de início, todas se movimentem um pouco às cegas com o objectivo de chegar ao manuscrito para fins privados e na mais completa ignorância em relação ao perigo que correm. Aquele que mais se aproxima da realidade, apercebendo-se vagamente dos interesses ocultos que estão por detrás da invulgar missão que lhe é atribuída é precisamente o imigrante colombiano em Paris que, talvez pela sua inconveniente situação de estrangeiro oriundo de um país pobre para as facções de carácter mais nacionalista que estão interessadas no referido manuscrito, é utilizado de certa forma como “carne para canhão”. O mesmo jornalista actua como uma espécie de líder do grupo, ao conduzir a procura do mesmo manuscrito quando encontra, por casualidade, os restantes personagens em Pequim.

Outro personagem de origem sul-americana é o professor de literatura e, também, aspirante a escritor, Nelson Chouchén Otalora, de ascendência cino-peruana, a leccionar nos EUA e que deseja recuperar o manuscrito por razões sentimentais, que se prendem com o passado da própria família, o qual lhe parece suficientemente aliciante - porque recheado de episódios que tresandam a aventura -, para escrever um romance. A característica mais deliciosa deste académico, que deseja ser catapultado para a fama e assim estar presente nas parangonas das principais revistas literárias mundiais ao lado seus ídolos, é uma vaidade desmedida e um desejo ilimitado de fama, reconhecimento e de ser adorado pelas estórias que inventa.

A estes sonhadores aventureiros sul americanos junta-se um europeu, o calmo plácido o professor de literatura, Gisbert Klauss, apreciador da tranquilidade doméstica que entende como dever interferir o mínimo possível no seu trabalho intelectual. É, também, investigador no ramo linguístico e a sua principal ambição é descobrir um código-chave ou sistema universal de descodificação linguística que permita decifrar todo e qualquer sistema linguístico, inclusive nas línguas que já não são faladas na actualidade. Possui no entanto, um lado secreto: ao sair de casa para viajar após um longo período de clausura, descobrimos-lhe o lado contemplativo que lhe acentua uma veia poética assaz Göethiana. A sua ambição intelectual prende-se não tanto com a vaidade pessoal mas com o desejo de partilha e uma sede insaciável de conhecimento e deslumbramento, assim como o desejo de tornar possível a qualquer mortal letrado a leitura de toda e qualquer obra escrita, em qualquer língua e em qualquer estágio de evolução da humanidade, após o aparecimento da Escrita.

Estes três impostores só o são porque viajam incógnitos, isto é, ocultando o seu verdadeiro objectivo: encontrar o manuscrito. Uns para sair quer da mediocridade, no caso do jornalista Suárez, ou para incrementar as sua própria actividade ligada à escrita, ficcional no caso de Nelson e outros para sair da obscuridade em matéria de investigação científica, como no caso de Klauss. Os três possuem, cada qual à sua maneira, algo de misantropo, faceta que cultivam uma vez que o gosto por um certo pelo isolamento parece ser o caminho que convida à escrita.

O jornalista a colombiano-parisiense, Suárez Azevedo é empurrado para a viagem após sofrer um forte abalo na vida emocional, culmina num rompimento abrupto do casamento, após se deparar com o lado oculto da sexualidade da esposa. Já os dois professores possuem, cada qual à sua maneira, casamentos estáveis mas monótonos, aos quais aquela viagem vem lançar uma lufada de ar fresco por introduzir uma alteração brutal na rotina.

O erotismo em Gamboa

A presença de descrições de ousado conteúdo erótico em alguns momentos de Os Impostores deve-se ao carácter dionisíaco e algo pan sexualista de Otalora o qual, por vezes, se assemelha a um sátiro – sobretudo depois de conhecer a espia Irina – e à surpresa de Suárez, ao confrontar-se com as tendências sexuais cibernáuticas da mulher, Corinne, de quem se divorcia antes de partir em viagem.

A espia vinda da Rússia e a médica proctologista cubana que com quem partilham a aventura em Pequim dotam o texto de uma tonalidade humorística sem precedentes, levando o seu despreendimento e a leveza com que encaram as relações íntimas, no sentido kunderiano do termo, exortam-nos a ler a obra despojados do sentimento opressivo e quase esquizofrénico da quase omnipresença de um inimigo oculto ligado à procura daquele manuscrito.

Os dois companheiros de viagem sul-americanos procuram, durante a viagem, sacudir a monotonia do quotidiana e revigorar o marasmo sexual a que estiveram, até ali sujeito, ao produzir cenas escaldantes e hilariantes devido a uma excesso orgíaco hiperbólico numa evidente paródia a Miller e a Bukowsky.

Klauss está apenas presente como um desbloqueador, facilitador de comunicação já que, dos três impostores, é o único a conhecer a língua local, estando mais interessado em aprofundar os conhecimentos do que em aventuras amorosas que lhe roubem a tranquilidade exigida pela já avançada idade e por uma constituição física de homem habitualmente sedentário.

A estrutura do Romance

A trama é desenvolvida alternando o discurso destes três impostores, a que se junta um quarto narrador – um padre jesuíta francês que se encontra na posse do manuscrito e cuja vida depende de conseguir colocá-lo ou não nas mãos de Suárez, o qual tem ordem expressa do director do jornal para quem trabalha, de entregá-lo à embaixada francesa.

O final tem a desvantagem de optar por recorrer a uma cena algo estereotipada, um tiroteio ao estilo dos filmes do 007, que é depois, rematado por um epílogo a apelar para o misticismo, num texto inegavelmente belo pelo conteúdo poético, o quel poderíamos facilmente incluir na categoria de realismo mágico, imbuído por uma nuvem vaporizada de filosofia xintoísta com um cheirinho às máximas de Confúcio, o qual fecha a narrativa com um momento de requintada beleza literária.

Mas para quem tem dúvidas se deve ou não comprar o livro por desconhecer o Autor, a impressão de Urbano Tavares Rodrigues acerca da obra, datada de 2005, encarrega-se de dissipá-las:

«Qualquer leitor decerto se encanta com este romance de aventuras e caricaturas de Santiago Gamboa, polvilhado de exotismo e riquíssimo em humor. Mas são sobretudo os escritores e os professores universitários quem mais se há-de rir com as cómicas descrições das conversas de romancistas frustrados, seus sonhos e ambições, suas encardidas manobras para a obtenção do êxito que lhes foge.
O pretexto para este fabuloso exercício de ironia é uma rocambolesca intriga policial e de aventuras que envolve um manuscrito chinês desaparecido e leva a Paris e a Pequim, onde haverá tiros, angústia e suspense (e muito sexo à mistura) um catedrático peruano metido a ficcionista, outro escritor, este columbiano, sempre em busca de editor e amaldiçoando essa espécie, e ainda uma burlesca parelha constituída pelo enigmático senhor Petit e o discreto narrador, tudo olhos e ouvidos. Nestas páginas deliciosas de crítica aos intelectuais, aos sul-americanos, às mulheres fatais insaciáveis, o leitor vai viajando também, cruzando os ares, visitando hotéis de luxo, participando em superlativas cenas eróticas e rindo sempre, antegozando o próximo episódio, enterrando os heróis mortos, congratulando-se com a eterna vaidade e os eternos enganos dos vivos.»

Urbano Tavares Rodrigues in http://www.leitura.gulbenkian.pt

Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, January 12, 2011

"O sonho Masai" de Justin Cartwright (ASA)


Um romance que se lê com volúpia, humor e muito espírito crítico



Justin Cartwright nasceu na África do Sul e vive, actualmente, em Londres sendo, já desde o início da sua carreira literária, considerado pela crítica especializada como um dos mais interessantes escritores ingleses contemporâneos.

Em O Sonho Masai, o Autor explora os processos de aculturação sofrida pelos povos daquele reguião equatorial africana, sob forte influência da cultura britânica manifesta nos hábitos, padrões de cultura e normas de conduta daquele povo emblemático da nação Queniana.

Mas o que torna esta obra realmente interessante, sobretudo para os apaixonados das ciências sociais (com especial destaque para a antropologia e sociologia pela referência constante a nomes como Margaret Mead, Émile Durkheim, Marcel Mauss e Claude Lévi-Strauss) é o facto de este autor ousar estabelecer uma analogia entre os hábitos considerados "selvagens" da cultura da sociedade Masai e os da Europa da Segunda Guerra Mundial.

O conteúdo da obra oscila ao ritmo de duas histórias, contadas em paralelo, situadas em duas épocas diferentes: nos anos 1990 do séc.XX, o escritor Tim Curtiz é encarregue de elaborar um argumento para um filme sobre a etnóloga judia Claude Casson, a qual dedicou a sua vida profissional ao estudo da cultura Masai, nos anos 30, e ao regressar à Europa, durante a 2ª Guerra Mundial, acaba por falecer em Auschwitz, vítima da selvajaria ariana e da cegueira mental da própria família. Tim recolhe elementos da vida de Claude, através do testemunho de personagens suas contemporâneas e recorre, frequentemente, ao uso da analogia. Liga, desta forma, a sua vida pessoal e afectiva à da etnóloga acabando por estabelecer um fio condutor que une o passado ao presente.

Ao longo de todo o desenrolar da narrativa, o leitor tem a sensação de estar a assistir a um documentário da BBC. Pela alternância permanente entre cenas passadas num e noutro ambiente, o leitor mais atento é obrigado a repensar o conceito de "selvagem", pela comparação de comportamentos individuais e colectivos inerentes às duas culturas.

As descrições são pormenorizadas, detalhistas e dotadas de um realismo brutal, assemelhando-se, por vezes, às de Patrick Süskind em O Perfume (como a descrição do ambiente infecto de uma sala de cinema, no 1º capítulo).

Um livro humanista e demolidor no que toca à destruição de estereótipos e preconceitos. Suculento para quem é dono de uma mente aberta, a permitir olhar para as civilizações do ponto de vista do relativismo cultural e do interculturalismo. Ideal para quem gosta de pensar.

Cláudia de Sousa Dias

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Wednesday, January 05, 2011

“Predadores” de Pepetela (Dom Quixote)



Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos é conhecido pelo pseudónimo de Pepetela, tendo nascido em Benguela, a 29 de Outubro de 1941. A sua obra reflecte sobre a história contemporânea de Angola e os problemas que a sociedade angolana enfrenta. Durante a guerra colonial, Pepetela, sendo angolano de ascendência portuguesa, lutou juntamente com MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola)pela independência daquele país, então uma colónia portuguesa. A sua obra nos anos 2000, na qual se enquadra o presente romance, critica a situação angolana, cujos textos são marcados por um estilo vincadamente satírico, onde se inclui a série policial Jaime Bunda. As suas obras mais recentes também são, para além de Predadores onde critica asperamente as classes dominantes de Angola, O Quase Fim do Mundo, uma alegoria pós-apocalíptica, e O Planalto e a Estepe, que examina as ligações entre Angola e outros países ex-comunistas. Licenciado em Sociologia, Pepetela é docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade Agostinho Neto em Luanda.

Em Predadores, a corrupção do homem pelo homem é caracterizada como uma psicose social responsável pelo apodrecimento da estrutura burocrática que sustenta o mecanismo de funcionamento das Instituições de um Estado, quando este se alia ao crescimento desregulado do capitalismo selvagem. Neste romance, o Autor propõe-se dissecar, expondo exemplos concretos da forma como evolui a estrutura económica de um país – passando por vários regimes políticos e sofrendo vários tipos de influência social, cultural e ideológica, que se arrasta ao longo de várias décadas com deficiências estruturais graves, apesar da imensidade dos recursos naturais de que dispõe – ao longo de um período que abarca quatro décadas. Ao lermos uma obra desta envergadura ficamos conscientes até que ponto o estado actual daquela economia não é alheio às consequências da descolonização portuguesa, nem ao teor das relações que o mesmo país recém-independente estabeleceu, desde então, com as principais super-potências económicas – e bélicas – mundiais, interessadas apenas em explorar os recursos naturais locais em proveito próprio, mais do que em desenvolver a região.

Pepetela utiliza a acuidade e a frieza do olhar de sociólogo para inserir um conjunto de personagens fictícias, representativas da mentalidade e da cultura daquele país, sem esquecer os elementos cumulativos da cultura local que se fundiram ou foram sendo moldados pela influência externa, isto é, pela forma como se foram “casando” duas formas de viver diametralmente postas – o modo de viver africano, a cultura ancestral e a respectiva relação com os elementos locais, com a terra em si, e os invasores europeus e americanos.

O livro é, todo ele, tal como dá a entender o título, uma implacável crítica às classes dominantes, aos predadores, que exploram de forma “canibalesca”, os seres mais fracos da própria espécie.

A figura mais representativa desta classe é Vladimiro Caposso, novo-rico, oportunista, grande empresário e latifundiário, que exerce uma forte pressão no sistema bancário e político daquele país no sentido de obter privilégios e benefícios, no sentido de forjar leis que favoreçam os seus negócios de forma que não pareçam ilegais. Vladimiro Caposso é um ex-militante do Partido Comunista de Angola, que cedo deixa de ser, logo que se lhe apresenta outra forma mais fácil de obter mais poder e que lhe possa ser útil aos seus objectivos de enriquecer meteoricamente. A qualquer preço.

A filha mais nova, Mireille, é uma predadora mais soft, mais discreta. Trata-se de uma beldade, culta e inacessível, que gosta de brincar com as emoções dos que a amam, tal como um felino que se diverte com a presa antes de a matar, neste caso, de a dispensar.

Outro predador, mais frio e calculista, com ar vagamente lupino, acentuado pelos olhos claros e cabelos cinzentos como o pêlo do lobo do Alasca, é o investidor americano Wolf, é um dos poucos cuja inteligência rapace consegue superar a esperteza saloia de Caposso.

Do lado oposto à classe dos predadores, temos os idealistas que acreditam no fruto do trabalho, no treino intensivo e na preparação adequada ao exercício de uma dada profissão como é o caso do jovem engenheiro Nacib, filho de um sapateiro. O jovem consegue, com grande esforço e persistência, tirar um curso superior enquanto trabalha numa oficina de mecânica de um amigo do pai. Nos EUA, apercebe-se que as fronteiras sociais são um pouco mais diluídas do que no Velho Mundo, embora o controlo social seja muito maior - por exemplo, nota que os Americanos não são dados a manifestações afectivas em públicos por temerem a crítica social, reservando as efusões apaixonadas para o espaço privado. Ali, conhece uma jovem onde se relaciona de igual para igual, mas em África vive uma angústia constante, sentindo o peso das origens humildes da da condição sócio-económica operária da própria família, por se apaixonar por uma mulher de condição social muito superior.

O trabalho árduo não lhe permite enriquecer, apenas viver de forma um pouco mais confortável do que os pais, o mesmo acontecendo ao advogado idealista e honesto, defensor de causas perdidas que conhece quando tem de processar Caposso pelo desvio ilegal de um rio, que deixa várias povoações e pastagens sem água. É, sobretudo, a distância em termos sócio-económicos que interfere no seu relacionamento com Mireille. Com o desenlace da trama, damo-nos conta que não basta uma revolução para derrubar os muros erigidos por preconceitos e estereótipos, sendo necessárias várias décadas de trabalho duro e efectivo para produzir uma mudança subtil.

Mireille é uma jovem muito mais superficial do que aparenta. Preocupa-se apenas em fazer o que gosta, sem se preocupar com o bem estar-alheio, ao contrário da irmã, a altruísta e romântica Djamila.

A narrativa

A trama é construída mediante um vertiginoso jogo temporal de avanços e recuos. A estória inicia-se com a descrição de um crime, cuidadosamente premeditado e planeado ao mais ínfimo detalhe, de forma a encobrir pistas que mostrem tratar-se de um crime passional e, simultaneamente, incriminar uma entidade partidária rival do partido político amigo de Caposso.

Após o primeiro facto que introduz a estória ficcional, o Autor adiciona um elemento algo insólito: inicia um monólogo, onde explica a intenção da história, tece comentários pessoais, como uma voz externa à narrativa e, só então, faz a regressão temporal para explicar a construção e evolução da personalidade de Caposso e a forma como esta se encaixa na História do País, demonstrando como a elasticidade moral do personagem se torna directamente proporcional à riqueza obtida.

Por outro lado, as personagens que se apercebem do verdadeiro carácter de Caposso e não partilham dos mesmos ideais ocupam, cada vez mais, uma posição periférica no jogo de poder e influência, como é o caso do sogro, do filho mais velho do empresário, ou o jovem engenheiro, apaixonado por Mireille…

Quanto à posição assumida por Vladimiro na educação dos filhos, esta vai de um extremo ao outro: exigente com as filhas – apesar de se mostrar sempre mais condescendente com Mireille – quanto ao desempenho na escola e ao desejo que obtenham formação superior – mas permissivo com os filhos, aos quais não dá valor nem permite o menor grau de autonomia. No entanto, a todos eles, acaba por mutilar, de uma forma ou de outra, a personalidade, uma vez que lhe interessa realmente controlar as suas vidas e torná-los, a todos, dependentes da sua pessoa.

Mireille sabe, no entanto, aproveitar o afecto incondicional que lhe dedica o pai, para fazer apenas o que gosta, tirando partido da adoração que este lhe dedica, optando por uma vida de diletante.

O combustível “verde”

Pepetela explora, com realismo e evidente sentido de humor, o hábito generalizado de aplicação de subornos à população em geral, sob a forma de generosas gorjetas – sobretudo em dólares, vulgarmente chamadas de “gasosas”. A prática de atribuição de “gasosa” é transversal, atravessando todas as camadas sociais. A própria aplicação da lei está condicionada pelo montante de que se pode dispor para atribuição destas “gasosas” que funcionam como combustível para que a “máquina” ou estrutura burocrática desbloqueie os processos e trabalhe efectivamente.

A cobiça dos “outros”

O Autor dedica, praticamente, um capítulo inteiro a explicar as razões pelas quais um empresário americano possa ter interesse em investir num país como Angola, através do olhar de Nacib, enquanto este estuda nos EUA.

É através dos passos de Nacib que também ficamos a conhecer a vida nos bairros pobres em Angola, as perigosas deambulações dos meninos de rua, as tradições ancestrais que resultam em autênticos atentados aos direitos humanos – como as mutilações genitais – e que colocam a vida de muitos adolescentes em risco, a que se junta a falta de comida, a insalubridade e a exposição por parte dos jovens a situações de elevado perigo eminente.

Parece haver, no entanto, uma minoria que prefere não escolher o enriquecimento a qualquer custo e acreditar num ideal, ao apostar na moderação das ambições na qualidade do ensino e no trabalho persistente… é o caso de Nacib quando se alia ao advogado das classes mais pobres, José Matias…

O mosaico sócio-económico completa-se com a esquematização da forma como as divisas públicas são desviadas para off-shores e arrecadadas pela especulação financeira, servindo-se os caciques de lacaios que trabalham em instituições do Governo ou à frente da gerência de instituições bancárias, os quais enriquecem entupidos de …”gasosas”, como o funcionário bancário a quem Caposso apelida de “Rato”.

O assedio sexual no trabalho e a prostituição infantil feminina perecem ser, também, práticas institucionalizadas. O primeiro, sobrevive e perpetua-se devido ao silêncio e ao medo de perder o trabalho, enquanto o segundo é alimentado pela fome e pela ignorância, das próprias famílias, que vendem as filhas ou, na melhor das hipóteses, na exploração sexual das mesmas jovens, optando pelo relaxamento das normas de forma a obter benesses. Toda a situação é sustentada pelo extraordinário declive resultante da assimetria de rendimentos que cava o fosso entre pobres e ricos.

As pausas, cheias de sarcasmos, contém apartes do narrador e o mérito de conseguir aligeirar um pouco a trama, ao colocar uma nota de humor a raiar a sátira.

Também a decisão do Autor em introduzir um detalhado glossário no final do livro, contendo o léxico local, profusamente utilizado no texto, é uma mais-valia para o romance, facilitando a compreensão do mesmo, o qual adquire verosimilhança com a introdução dos regionalismos.

A trama obedece a uma estrutura descontínua, cheia de avanços e recuos, como uma espécie de dança entre passado e presente a explicar, de forma dinâmica, a origem da fortuna do protagonista e em paralelo com a decadência da Angola contemporânea, face à corrupção generalizada.

A vulgaridade, patente na exibição do novo-riquismo de Vladimiro Caposso, o qual se mostra mais preocupado com as aparências para atrair investidores do que com a saúde das empresas que possui, acaba por fazê-lo negligenciar a rentabilização de alguns dos seus bens, não pagando aos trabalhadores. Uma postura que terminará por levá-lo a ser engolido por outros predadores maiores do que ele.

Este Vladimiro simboliza a arrogância de uma classe dirigente, cujo principal traço de personalidade consiste em desprezar as pessoas em geral, desde a secretária, de fidelidade canina, a que chama de Fátima Magricela, até ao genro que lhe compra parte das acções no empório.

A única pessoa que parece conquistar-lhe, momentaneamente, algum respeito é o Inspector Celso Cardoso, incorruptível funcionário de Polícia, exímio cumpridor da Lei, excepto quando recebe expressamente – e por escrito – ordens das chefias em contrário.

As referências pejorativas no léxico popular, relativamente ao regime sul-africano, estão patentes no uso corrente da expressão sul-africães com evidente sarcasmo, a denunciar um omnipresente sentimento de desconfiança em relação a tudo o que é originário da África do Sul ou que lembre o regime do apartheid.

Mas o caciquismo na política e o modus operandi dos grupos de pressão são especialmente evidentes quando se trata de censura à comunicação social: no romance, um jornalista é despedido por ter publicado um artigo onde é comentada o comportamento inconveniente de Caposso, durante um concerto, durante o qual falava em voz alta ao telemóvel.

A reviravolta acontece na parte final da trama, onde presenciamos um Vladimiro numa posição económica muito mais frágil, obrigado a adoptar uma atitude mais discreta pois corre o risco de deixar de ser intocável. Vladimiro é um predador demasiado confiante, por deixar a descoberto alguns pontos vulneráveis. O final do romance tem a ver não tanto com a visão optimista e algo lírica de uma justiça triunfante, mas com uma percepção darwinista de uma sociedade, onde a sobrevivência cabe aos mais aptos ou aos mais trapaceiros e não necessariamente aos mais inteligentes. Onde os velhos predadores são apenas substituídos por outros mais hábeis, enquanto o sistema de sobrevivência baseado na lei do mais forte tende a perdurar.

Um livro inquietante, céptico e pessimista mas que, nas entrelinhas, deixa perceber acreditar no poder da denúncia...

Cláudia de Sousa Dias