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Monday, November 26, 2012

“O Sangue do Mundo” de Catherine Clément (ASA)




Tradução de Isabel St. Aubyn

Depois do êxito do sublime romance A Viagem de Théo, Catherine Clément decidiu escrever uma sequela. Assim, ficamos a saber em que espécie de jovem adulto se transformou o sobrinho de Marthe, a criança que sobreviveu ao cancro. Desta vez, dando largas ao temperamento cada vez mais vincado de milionária excêntrica, Marthe consegue convencer Théo, a acompanhá-la em mais uma viagem à volta do planeta. E Théo é agora estudante de medicina, com o objectivo de concluir a tese sobre as doenças características dos países do III Mundo, isto é, associadas à ausência de infraestruturas, relacionadas com os problemas de saúde pública.

Através do recurso a métodos pouco ortodoxos – ou nem tanto – a manipuladora Marthe consegue persuadir Théo ao convencê-lo de que está doente e a acompanhá-la na viagem que pretende realizar, a pretexto de uma cura emocional. Em troca, promete ajudar sobrinho, dando-lhe os meios para prosseguir a sua investigação no terreno, em vários continentes afectados por problemáticas diversas. Mas a tendência para Marthe assumir o comando das operações cedo desencadeia um conflito ao chocar com o forte sentido de autonomia de Théo, o qual tem bem definidos os moldes em que deseja concretizar a viagem. Afinal não se trata de um passeio de teor propriamente recreativo.

O desenvolvimento da narrativa é feito com base na dicotomia entre duas formas de ver o mundo: o hedonismo materialista de Marthe, para quem o dinheiro é a solução de todos os problemas e o idealismo ou as preocupações relativamente a um futuro sustentável e saudável para o planeta, postura que é incarnada pelo jovem estudante de Medicina que, no romance se dedica a avaliar o estado de saúde do planeta. No aspecto psicológico, temos a propensão para o hiper-dramatismo e algo histriónico de Marthe a contrastar com a bonomia e altruísmo do sobrinho, habituado já a lidar com condições adversas.

Sangue do Mundo está longe de ser o melhor romance de Catherine Clément, mas é em contrapartida aquele que mais questões obriga o leitor a colocar no sentido de pensar a forma como tratar do planeta e os obstáculos à sua optimização, regra geral de natureza, política, cultural, religiosa, etc. A temática dos amores impossíveis, rodeados da aura trágica do sublime passa a ocupar o segundo plano neste romance. O desgosto amoroso ou mesmo a desilusão e o vazio emocional não são totalmente alheios à personagens de Sangue do Mundo, mas aqui o lugar central da trama é ocupado pela Terra, enquanto ser pulsante de vida. E a Terra encontra-se gravemente doente...

A primeira etapa da viagem é Delhi, uma das cidades mais poluídas do planeta e onde a pobreza como que agride os sentidos do visitante estrangeiro. Entretanto, no avião, a caminho de Delhi, Théo apercebe-se de que a verdadeira causa da “doença” de Marthe é emocional. Esta propõe então que o sobrinho a acompanhe à volta do mundo e, em troca, fornece-lhe os meios materiais para prosseguir com o seu projecto de investigação. Théo cede, mas as coisas têm de ser feitas à sua maneira: terá de ser ele a escolher os locais a visitar ao longo do itinerário.

Assim, Delhi é a primeira etapa. Tratando-se de um dos lugares mais populosos e poluídos do mundo aquela cidade indiana torna-se um excelente ponto de partida para os planos do jovem. A cidade sofre as consequências directas do aquecimento global e do efeito de estufa. Devido ao excesso de poluição atmosférica, a água do rio que banha a cidade está inquinada sendo este o grande foco de transmissão de doenças infecto-contagiosas para aquela população. A partir daqui, o estilo da prosa de Catherine Clément adquire um tom cáustico, onde a voz narrativa vai descrevendo os locais e a sua devastação, entrelaçando estes momentos descritivos com diálogos acalorados, discussões e debates que misturam a Filosofia, a Ética, a Antropologia Cultural e Biológica e ainda, claro está, a Ecologia. O objectivo é identificar as ameaças mais prementes que põem em perigo o planeta e todos os que nele vivem, propondo soluções que só parecem frágeis devido à enorme cegueira humana, o verdadeiro e maior vírus que contamina a Terra.

De Delhi passamos a Benaresh e ficamos a saber que, à parte da água, o principal problema indiano reside numa complexa estrutura social, cujos tabus e condicionalismos culturais muitas vezes colocam em risco os que habitam aquele continente. O problema da Índia passa não só pelo excesso de poluição e de população, mas também pela estruturação da economia. Mas não só: são ainda factores culturais e religiosos que sublinham a urgência de as chefias políticas encontrarem um compromisso urgente entre ecologia e tradição.

Da Índia passamos, assim, ao Uzbequistão e ao drama ecológico do mar de Aral, associado à desertificação, onde o mar desaparece a uma velocidade assustadora.

A narração fica alternadamente a cargo de Marthe e Théo. Outras pessoas se juntam, no entanto, à viagem. Prem, o psiquiatra hindú, amigo e confidente de Marthe, cuja amizade contribui grandemente para o bem estar da temperamental anciã (e para a paz de Théo); Renate Stern, a jovem e inteligente estudante judia, amiga de Théo, por quem este se apaixona.
Ainda no Uzbequistão constata-se com pesar e tristeza a irreversibilidade da destruição de todo um ecossistema, devido a uma política agrícola tão mal planeada quanto irresponsável levada a cabo durante décadas.

A etapa seguinte leva os viajantes à República dos Camarões onde o principal problema é, mais uma vez, a falta de água potável e o saneamento, a par de uma progressiva e inexorável contaminação biológica, a que se junta a acumulação de gigantescas montanhas de lixo. Tudo aponta para necessidade gritante de reciclar o lixo acumulado e controlar o crescimento da lixeira, a par da necessidade de implementação de uma politica governamental de tratamento do mesmo. O périplo de Marthe e Théo continua em África, pelo Chade e Senegal onde, mais uma vez, os grandes lobbies económicos colidem com as reais necessidades de desenvolvimento local que beneficiariam a população. A Autora aproveita, neste ponto do romance, para lançar uma dura crítica ao chauvinismo europeu, em pleno século XX, já nos anos 60 e 70, mais preocupada em usar os recursos alheios para atender aos próprios interesses do que propriamente ao bem-estar das populações locais.

Daqui, fazem um desvio a Paris com o objectivo de visitar a central nuclear de La Hague. Ao optimismo da técnica que acompanha os viajantes numa visita guiada como se de um museu se tratasse, opõe-se algum cepticismo dos viajantes, sobretudo da parte de Théo. Esta oposição seria talvez mais veemente se o livro tivesse sido escrito depois do tsunami de Fukhushima. Por outro lado, a Autora não perde a oportunidade de lançar um virote crítico aos mecanismos de empréstimo e de ajuda financeira do FMI:

Gente disposta a financiar os países do Terceiro Mundo, mas com um desprezo sem Fundo. Na opinião da Autora, o verdadeiro significado que comporta a expressão “a fundo perdido”.

Paris tem a Central Nuclear de La Hague, a partir de cuja descrição ficamos a saber de todo o processo de tratamento do lixo nuclear. Théo não se mostra muito convencido, ao passo que Marthe quase se deixa seduzir pelos argumentos da guia e dos técnicos. A diferença de posicionamento de ambas as personagens é o meio através do qual se serve a Autora para expor os pontos a favor e contra desta rentável mas altamente poluente forma de energia, sem deixar de chamar a atenção para a irresponsabilidade dos Governos Francês e Americano nos anos 1960 e 1970 nesta questão.

A última etapa da viagem é no Canadá, com o povo Inuït, em que ficamos a conhecer um pouco mais da cultura esquimó, praticamente em vias de extinção, devido à aculturação e à destruição do habitat – ao degelo, sobretudo – e aos lobbies do governo canadiano.

A viagem termina de forma dramática durante um voo com destino à Europa. O final trágico de uma história de amor que, apesar de ocupar uma posição secundária na trama, faz-nos regressar ao toque poético eivado de nostalgia , típico de Clément, a sublinhar o lado trágico da vida, onde a acção das Fúrias se manifesta quando menos se espera, à maneira das tragédias clássicas, reduzindo o homem à sua fragilidade, alertando-o para que a sua arrogância não ofenda os deuses.


25.07.2011- 23.10.2012
Cláudia de Sousa Dias

Thursday, November 08, 2012

"Estação das Chuvas" de José Eduardo Agualusa (Dom Quixote)



Dados Bio-bibliográficos:

José Eduardo Agualusa é natural do Huambo, Angola, nascido a 13 de Dezembro de 1960. Viveu a infância e a adolescência rodeado do contexto de guerra do Ultramar. Frequentou a Universidade na capital portuguesa, tendo estudado Agronomia e Silvicultura. Actualmente, reparte a vida entre três continentes: Portugal, Angola e Brasil.

José Eduardo Agualusa escreveu várias peças de teatro, duas delas e parceria com o escritor moçambicano Mia Couto. Agualusa beneficiou já de três bolsas de criação literária: a primeira, atribuída pelo Centro Nacional de Cultura, produziu Nação Crioula e 1997; a segunda, em 2000, foi atribuída pela Fundação Oriente e permitiu-lhe visitar Goa durante três meses, cenário que serviu para inspirar a trama de Um estranho em Goa; a terceira, obteve-a em 2001 através da instituição alemã Deutscher Akademisher Auslandersdienst durante a qual residiu em Berlim ocupando-se a escrever O ano em que zumbi tomou o rio. No ano de 2009, ficou dois meses em Amsterdão, onde escreveu Barroco Tropical, a convite da Fundação Holandesa para a Literatura. José Eduardo Agualusa é também cronista da revista “Ler” tendo também dirigido o programa “A hora das Cigarras” na RDP África, dedicado inteiramente à música e literatura africana. Em 2006, tinha-se já tornado membro fundador da editora brasileira Língua Geral, dedicada às Literaturas Lusófonas. É também membro da União de Escritores Angolanos.

Olhares sobre Estação das Chuvas

Dada a complexidade da obra decidimos, numa perspectiva comparativa dotar os leitores deste blogue da visão de quatro autores que investigaram esta obra de José Eduardo Agualusa, após o que finalizaremos com uma breve conclusão acerca da obra em si.

1. José Eduardo Agualusa é considerado segundo vários investigadores, um escritor pós-moderno, criador de uma meta ficção histórica, no caso particular do romance Estação das chuvas, embora possamos encontrar marcas dessas corrente literária também em outras obras da sua autoria como no caso de O Vendedor de Passados. Mas é neste Estação das Chuvas que o Autor faz uma tentativa evidente de reconstituição histórica e identitária de um determinado período da história de Angola. Tentativa essa que está imbuída de uma forte componente social, cultural e política da Angola pós-colonial, a pretexto de uma suposta biografia romanceada acerca de uma poetisa e historiadora, por parte do narrador participante: Lídia do Carmo Ferreira , activista do Movimento de Libertação de Angola. Esta é uma personagem ficcional, mas poderia perfeitamente ser uma personagem histórica dada a sua verosimilhança. Lídia é o pretexto do qual se serve o narrador para efectuar uma minuciosa investigação e discussão histórica usando o monólogo interior levado a cabo pelo jornalista enquanto se dedica a reconstituir a vida da poeta-historiadora, sobre o intrincado e interminável processo de Guerra Civil e que sofreu aquele país após a Independência em 1975.

O relato biográfico desta personagem fascinante que é Lídia do Carmo Ferreira, a qual desaparece em 1992, é construído de forma consolidar a ideia de verosimilhança da heroína do romance sendo-lhe conferindos os contornos de uma personagem real.

A verosimilhança desta personagem ficcional é construída de forma cuidada, partindo da acção do narrador participante: um jornalista, assume a missão de entrevistar a escritora para construir a sua biografia, integrada no processo histórico do seu próprio País e cuja credibilidade é sublinhada por uma cuidadosa recolha de documentos efectuada pelo biógrafo: cartas, depoimento, entrevistas e escritos dispersos.

O romance inicia com um episódio onírico, uma espécie de sonho-pesadelo de conteúdo aziago, cheio de presságios de morte – a poeta sente-se boiar num mar infestado de medusas - , um lugar onde o veneno e o perigo de morte pairam apesar da beleza e paz aparente. Não se trata de coincidência o facto de este sonho ocorrer logo na madrugada que se segue à declaração de independência daquela nação País, assinalada pelo discurso do Presidente Agostinho Neto. A história de Lídia prossegue com um recuo no tempo, até ao início do século XX, onde assistimos ao início da decadência do domínio português em África, passando depois a observar o percurso da escritora durante a Guerra do Ultramar, e da Guerra Civil, após a descolonização.

O desaparecimento de Lídia, altera um pouco os planos do jornalista cujo o principal objectivo será, então, o de descobrir o seu rasto e, ao mesmo tempo, reconstituir o passado histórico daquela nação,que se desenvolve paralelamente à versão oficial dos factos. Ao mesmo tempo, resgata a voz de todos os poetas desaparecidos e caídos no esquecimento ou afogados na malha de intrigas de um regime político pouco tolerante com a diferença.

Para a investigadora Tércia de Montenegro (1) detecta dois tipos de narrativa em Estação das Chuvas: o primeiro trata da construção de história de Lídia, envolta num cenário onírico que emana de um ambiente onde estão presentes os elementos do fantástico, do mito e da lenda que se influenciam reciprocamente dentro do cenário histórico (tal como o nascimento de Lídia, a lembrar um pouco a narrativa carregada de realismo mágico de Gabriel García Márquez, ou a atmosfera algo surrealista do sonho de Lídia adulta, a boiar no mar, um a presságio de morte, a sua ou a de um país tal e qual o conheceu; ou, ainda, a explicação mística para o aparecimento dos corpos femininos mutilados remetendo para as antigas lendas africanas e tradição oral da cultura daquele continente. Neste registo, a escrita de Agualusa adquire uma tonalidade marcadamente poética, mas sublinhando um forte contraste com descrições de extrema violência aquando da narração dos episódios relacionados com a guerra civil e de repressão política face a movimentos dissidentes em relação ao Poder, que Tércia de Montenegro classifica de “trechos de intensa clareza realista”. Exemplo disto são as descrições dos ambientes nas celas prisionais e o desespero, patentes nos escritos das paredes. Para Tércia de Montenegro, este estilo realista como que “agride” o primeiro, pintando o quadro de uma nação assolada pelo ódio e pela guerra sem deixar espaço à existência de seres que se dediquem à poesia.

A esta dicotomia de discurso segue-se o olhar dos estudiosos de literatura João Carlos Luna e Lucas Victor da Silva (2) que abordam a problemática do distanciamento entre a narrativa histórica e literária de um outro ponto de vista, em Estação das Chuvas ao contraporem os diversos géneros discursivos presentes na obra sob vários aspectos. Ambos tentam, em primeiro lugar, averiguar qual a relação existente entre História e Literatura na obra decorrente da contradição entre o título – contendo em si uma conotação poética, trata-se na verdade de uma metáfora, pois a nação está a arder com a guerra civil e sequiosa de água, de um longo aguaceiro que apague a guerra e lave a nação da destruição causada pelo ódio e pela corrupção; um aguaceiro que parece nunca chegar...Entretanto o leitor embrenha-se na história de Lídia, embarcando num género discursivo totalmente diverso daquele, assente na polémica que se gera à volta do seu desaparecimento, em 1992, com o terminar da guerra civil, altura e que deveria ter chegado a “estação das chuvas”. A partir daqui, o leitor sente a pulsão da curiosidade que o leva a seguir o rasto de Lídia, através de uma Angola devastada pelas chamas do ódio. É desenvolvida uma biografia ficcional, mas frequentemente interrompida pelos relatos da situação política, pela explicação da conjuntura económica e pela preocupação do narrador em esclarecer as intrincadas ligações de diversos movimentos políticos dissidentes e pela explicação dos interesses das potencias económicas externas nos recursos naturais daquele território. Por outro lado, esta dupla de investigadores salienta a alteração rítmica respeitante à biografia desta Lídia do Carmo Ferreira pela particularidade desta ser formada por vários tipos de discurso: o do narrador, em termos jornalísticos, o do mesmo narrador, mas adquirindo um pendor poético por vezes eivado de um pouco de surrealismo, entremeando a própria prosa com poemas de Lídia, ou coloquial ao utilizar o conteúdo de entrevistas e correspondência. O romance adquire assim um tom documental, permitindo-nos escutar a “voz” da personagem ficcional biografada como de de uma personagem real se tratasse. Lídia será assim, uma personagem tipo, ou segundo o Luna ,et al., “um aproveitamento ou fusão de uma série de personagens reais”. Luna e Silva propõem a partir daqui uma forma de olhar a relação História-Literatura em Estação das Chuvas como sendo constituinte de um campo de investigação que tem uma forte componente literária assente na história da Cultura da África Colonial Portuguesa. São, depois, explorados vários vectores temáticos que se confrontam, na óptica destes dois autores, em relações de bipolaridade, como a relação entre o elemento fantástico e surreal versus as realidades históricas, mas com ligeiras nuances em relação à visão de Tércia de Montenegro.

Luna e Silva apontam para a intenção do Autor Agualusa em diluir a fronteira entre estes dois elementos opostos – História e Literatura – numa tentativa de aproximar a lucidez da loucura, o real do surreal, o possível e o absurdo e efectuar jogos semânticos, assentes na criação de paradoxos. Esta fusão de géneros discursivos adequa-se, para esta dupla de investigadores, a um regime político pouco favorável à liberdade de expressão, onde o historiador , em consequência de uma politica que promove os interesses vários – uma política de supressão e desaparecimento de vestígios históricos, não pode (ou não deve) monopolizar o estatuto de detentor de uma verdade única e inequívoca. Por essa razão, o Autor serve-se de um discurso fronteiriço entre a história e a ficção “onde a segurança da verificação histórica e a arbitrariedade da imaginação literária se relativizam e se constituem mutuamente” (idem). Estes dois investigadores são de opinião que José Eduardo Agualusa “joga” com ambos os elementos, jogo esse que está patente no subtítulo da obra – Romance – a implicar uma pretensão literária. O mesmo jogo semântico é, por sua vez, afectado pela contradição inerente ao facto de o leitor ser constantemente “confrontado com uma série de marcas do discurso histórico”. Dentre estas, encontram-se citações de jornais, notas de rodapé a apontar para fontes “históricas”, entrevistas ficcionais, trechos narrativos de contextualização histórica, bem como o referências à metodologia usada também ela em investigação histórica, por parte do protagonista, incluindo técnicas de separação, classificação de documentos, compilação e transposição de pseudo-vestígios, inclusive reprodução de imagens, sons...

Ao longo da obra, estão também presentes textos cujo objectivo é a contextualizar historicamente a exposição da relação causa-efeito entre a forma como termina a segunda Guerra Mundial e e a alteração das peças do jogo de xadrez em relação ao domínio colonial por arte das principais potências europeias. Luna e Silva chamam também a atenção para o facto de que o narrador de Estação das Chuvas age na verdade como um historiador – fala na terceira pessoa, o que dá um carácter mais objectivo à narrativa -, ampliado pelo facto de Agualusa mencionar nos agradecimentos ter feito um trabalho considerável de pesquisa histórica . No entanto, descobrimos pouco depois, que Lídia é uma personagem fictícia. Assim, o narrador enquanto personagem passa a usurpar o lugar de protagonista e a assumir o papel de historiador marcando, assim, o romance com pendor documental.
Segundo Luna et al, há, em Angola, uma mobilização por parte dos intelectuais, para lembrar uma época em que as autoridades, herdeiras das políticas do passado, insistem em fazer esquecer. Uma delas consiste na forma clássica de exploração do homem: “arrancar-lhe a palavra e subjugá-lo pelo silêncio. Engrandecê-lo e reduzi-lo a nada; e assim, facilitar o mando” (ibidem). Assim, a forma mais fácil de impor uma cultura a outro povo parece ser, segundo Luna e Silva, a de “silenciar o adversário, sobretudo se este tiver a capacidade de moldar, na consciência colectiva, o sonho de um futuro diverso, com outras possibilidades ou caminhos”. A única via a apontar, aqui, parece ser assim a da obediência. Consequentemente, o povo escravizado, submetido (ou uma facção política dissidente) seria obrigado a calar a própria voz e a acatar a voz alheia, tal como sucedera durante séculos com a cultura ancestral africana. Deste modo, Estação das chuvas acaba por se transformar no produto de um esforço para contrariar a tendência para o desvanecimento da memória colectiva e procurar dar voz à vozes que foram condenadas ao silêncio, precisamente no momento da história de um país em que se chama a atenção para a falta de informação e de documentos sobre a história recente de Angola.

Hoje em dia, vários escritores africanos, entre eles Mia Couto e José Eduardo Agualusa, dedicam-se a esta chamada “literatura de fronteira, resultante da fusão entre aquilo que, classicamente, se entende por verdade histórica e memória colectiva, procurando recuperar a livre expressão de entre aquilo que se pode chamar de “caos pós-colonial”. A Memória é, aqui, usada como arma, para trazer a lume o testemunho de quem presenciou a história para construir a narrativa. Sendo que a História é algo que surge, na óptica destes dois estudiosos de Agualusa como algo de transaccionável no mercado de bens culturais – cinema, televisão, editoras, artes plásticas – o que torna impossível que esta deixe de atrair romancistas. Mas isto obriga a traçar limites a alguma promiscuidade que possa ter lugar entre História e Literatura no sentido de evitar confundir relatos usados no romance com História, uma vez que a Memória histórica está veiculada, à percepção, à interpretação de carácter emocional e subjectivo de quem a relata. Por outro lado, a história de que se fala em Estação das Chuvas lida com factos recentes onde se verifica um afastamento progressivo da utopia. Para a explicar recorre-se normalmente a argumentos gnosiológicos e expositivo-dialécticos sem se apoiar exclusivamente no testemunho oral, implicando a existência de documentos e vestígios a comprovar o mesmo testemunho, o que torna particularmente difícil a tarefa do historiador, face àquilo a que Luna, et al, chamam de “política de apagamento de vestígios de origem autoritária”. Já a Literatura, precisamente por não ser História, pode recorrer a outro tipo de estratégias discursivas historiográficas e “nadar nas águas fronteiriças entre o verdadeiro e o verosímil, ao participar activamente na criação de sentidos para o mundo e agir politicamente sobre ele”(Ibibidem). Consequentemente, a Literatura pode tornar-se um agente de mudança, daí falar-se em “polifonia discursiva” ao referirem-se a Estação das Chuvas. Trata-se de um discurso a várias vozes, de onde jorra abertamente a ironia eivada de cepticismo, face a visões redutoras ou mistificadoras, a chamar a atenção para a história não contada oficialmente: o ponto de vista dos vencidos.

José Eduardo Agualusa, por sua vez, chama a atenção para perigo do estreitamento da visão que faz da História único ramo do saber autorizado a falar sobre o passado, precisamente pelo facto de esta versar quase sempre sobe o ponto de vista dos vencedores. Daí Luna et al fazerem notar que: “Lídia é historiadora mas escreve poemas”. Do mesmo modo Agualusa é jornalista e escreve romances. A personagem Lídia do Carmo Ferreira é assim a ponte possível entre a Literatura e a História no romance Estação das Chuvas, de cuja memória representativa de um conjunto de vozes silenciadas Agualusa se serve como veículo de acesso ao passado.

Lídia nasce em 1928, no início da ditadura do Estado Novo, vive as transformações do novo padrão político no tocante ao domínio colonial. Cresce a ouvir as críticas ao regime, estuda na metrópole, tal como os membros das élites luso-descendentes e crioulas. Lídia é uma criação de José Eduardo Agualusa, mas pode perfeitamente representar um tipo social – a mulher culta, de consciência política e com capacidade interventiva. Faz também uma incursão em Berlim para aprofundar os seus conhecimentos sobre um tema não valorizado no mundo académico do Portugal de então: a história de um africano protegido por um nobre alemão que se tona um influente intelectual no século XVIII, em Halle, Jenna e Wittenberg. Lidia do Carmo Ferreira convive com pessoas ligadas ao Movimento da Luta Anti-Colonial, juntamente com o poeta Mário Pinto de Andrade. Há uma passagem do texto em que ambos discutem de forma calorosa a questão da negritude e do tropicalismo na poesia africana e onde são também discutidas as diferenças etno-culturais e de estatuto socioeconómico entre as populações pobres, alheias a toda e qualquer ideologia política, traçando os contornos do abismo entre a África profunda e as grandes cidades vergadas ou aculturadas – sob o peso da Velha Europa. A respeito da sua própria poesia, Lídia sente-se o produto da fusão de ambas as civilizações, como iremos ver a seguir.

A investigadora Iza Quelhas - doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, desde 1996, professora adjunta de Literatura Brasileira na Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual Rio de Janeiro, desde 1997 – classifica Lídia enquanto personagem como “uma intelectual de fronteira”, indo ao encontro da visão da dupla de investigadores Luna e Silva acerca da ligação estabelecida em História e Literatura, na obra de que aqui tratamos. Assim, sendo Lídia Historiadora e, simultaneamente, poeta, torna-se o principal elo de ligação entre estas duas vertentes. É, por isso, construída como uma personagem que se movimenta numa espécie de limbo, algures entre os meandros da História que implicam a investigação científica no ramo e a criação literária.

O poeta Mário Pinto de Andrade (personagem real) é apresentado como o poeta da negritude. Entra em diálogo – fictício, obviamente – com a Poeta para acusar Lídia de “tropicalista”, à semelhança de Gilberto Freire, provocando uma reacção na jovem, a qual conforme salienta Iza Quelhas e muito bem, se sente culturalmente crioula, ou seja, “mestiça”: Ela transcende a questão racial e pensa na crioulidade culturalista que inclui todas as cores daqueles que politicamente se comprometem em combater o imperialismo colonial (3).

Lídia emerge, assim, de um cenário social onde a cor da pele caracteriza não só o estatuto da pessoa mas também estratifica a poesia. Esta personagem acaba por representar, de certa forma, um certo hibridismo, não tanto pela cor da pele, mas pela formação histórica e cultural que a vincula a dois mundos que se confrontam. O facto de Lídia viver permanentemente nesta zona de fronteira, obriga-a a pagar um preço: uma vida em contacto permanente com a hostilidade alheia e a insegurança, que culminam num forte sentimento de inadaptação, de que nos apercebemos logo no primeiro capítulo, onde a protagonista sonha com o oceano.

Da mesma forma que Luna e Silva, Iza Quelhas problematiza alguns aspectos sócio-culturais da relação entre História e Literatura cuja influencia recíproca parte das estratégias discursivas de Estação das Chuvas. Esta Autora destaca a a particularidade de a personagem se movimentar num universo onde escasseia a informação em termos de fiabilidade e fidedignidade pelas dificuldades de validação das mesmas relativamente aos factos sociais e políticos da história recente de Angola, sobretudo no período pós-independência. Trata-se assim de um problema político que perturba as questões metodológicas para quem deseja tratar as questões históricas do ponto de vista científico. Ainda no mesmo artigo, Iza Quelhas refere duas formas distintas de produção literária: a literatura usada como denúncia; e aquela que passa a ocupar o lugar de verdade histórica, acusando um confronto entre discurso literário e discurso político, como acontece neste romance de Agualusa.

Um facto curioso é que o próprio autor de Estação das Chuvas chegou a receber no seu correio electrónico, informações sobre a sua própria personagem de gente que afirmava tê-la conhecido. E, se calhar, conheceram...Uma vez que Lídia aparece com participante activa do projecto relacionado com a independência de Angola, associado à construção de uma estado de direito democrático, é natural que muita gente possa ter conhecido alguém com características idênticas. Mas aqui o posicionamento ético do escritor funde-se no seu projecto estético, através da criatividade, fazendo do romance um veículo difusor de valores. Estação das Chuvas insere-se assim na literatura do tipo “formativo” a tomar parte activa no processo de construção de cognições do leitor. O tom testemunhal está presente, como é típico em literatura africana, desde as raízes da tradição oral que se mantém nos contemporâneos. Este tom testemunhal confere verosimilhança e esbate fronteiras “entre literatura e história, em tempos neoliberais” (Quelhas, 2009). A verosimilhança de Lídia do Carmo Ferreira nasce a partir de textos, que seriam supostamente de sua autoria e da “sua” memória enquanto captada através, de entrevistas, cartas, poemas, etc. Esta ideia é confirmada na citação de José Eduardo Agualusa, nos agradecimentos, onde refere vários nomes ligados à independência de Angola, salientando que o romance “deve muito a alguns amigos que me apoiaram durante o trabalho de pesquisa e documentação ou que se dispuseram a partilhar comigo as suas memórias.”

Iza Quelhas chama ainda a atenção para a estrutura e Género Narrativo na obra onde o romance se apresenta dividido em nove parte: “No Princípio,” “A busca”, “O exílio”, “O dia eterno”, “A euforia”; “O medo”, “A fúria” e “O fim”, sugerindo na sequência dos títulos a evolução da trama. No entanto, nenhum dos capítulos correspondentes a cada uma destas partes, que dividem a narrativa têm título, apesar de estarem numerados.

Iza Quelhas chama a atenção em particular para o onde é particularmente notório o entrelaçamento narrativo entre a forma narrativa literária e histórica em que se dá o confronto entre realidade e verosimilhança: o episódio do assassínio das “sereias”, isto é, mulheres cujos corpos aparecem horrivelmente mutilados, cortados rente ao umbigo, facto que a tradição popular atribui ao mito das “Kianda”, isto é, de mulheres-peixe, cuja parte inferior do corpo teria sido cortada para ser vendida no mercado... As suspeitas caem inicialmente nas populações que, tradicionalmente praticavam canibalismo. Por outro lado, o racismo paternalista de alguns colonos, sobretudo de origem anglo-saxónica afirmavam tratar-se de um crime demasiado “requintado”, que exigia demasiados detalhes para serem planeados por gente negra:

Um crime desta natureza requer a ciência de um homem instruído e a sensibilidade de um lorde inglês...” (5)

A intenção do autor ao descrever esta passagem está carregada de ironia, a realçar a discriminação racial, feita de forma subtil mas evidente, com o objectivo de estratificar os níveis de inteligência humana consoante as etnias e com base exclusivamente na cor da pele, numa perspectiva de puro relativismo cultural e etnocentrismo europeu, subestimando aquele que é diferente.

No romance, a personagem Lídia atravessa uma crise assaz séria de identidade fruto da pressão cultural a que vai sendo submetida ao longo da vida e que a coloca em confronto com grande parte dos restantes escritores angolanos, como se vê no poema seguinte:

Já não sei quem fui, quem sou
Já não sei quanto de mim
não a vida, mas aquilo que, da vida,
em algum livro, eu li.”

As intertextualidades em Estação das Chuvas ainda segundo I.Q consistem em estratégias que se revelam decisivas para salientar o efeito da pluralidade das vozes e diversas temporalidades que estão na base da arquitectura da obra. Segundo esta investigadora, o leitor deparar-se-á com um narrador que se encontra “em trânsito”, isto movido ela busca contínua de algo que parece ser o motor que impele quer ao desenvolvimento da narrativa, quer da linguagem. Encontramos personagens semelhantes em obras como as de Antonio Tabucchi e Fernando Pessoa.

A sensação de incompletude que encontramos em muitos escritores pós-modernos como Agualusa, amplia e multiplica o significado simbólico que está presente ao longo da narrativa. Segundo os estudiosos do pós-modernismo na literatura a actual, a concepção quer da Literatura quer da História é a de que ambos os discursos são construções convencionadas em formas linguísticas diferentes, mas que implicam o conhecimento na área das ciências sociais e humanas. Ambos os campos de investigação ou de construção da linguagem referem-se ao Homem na sua especificidade enquanto falante e produtor de texto. Assim, sempre que o Homem sai fora do texto, saímos do âmbito das Ciências Humanas e entramos no campo das ciências físicas como a Biologia, a Astronomia etc. Mais: entra-se pura e simplesmente no campo da tecnicidade financeira ou da Engenharia Económica desumanizada. Iza Quelhas defende que o narrador de Estação das Chuvas evidencia o quanto as nossas memórias discursivas e textuais formam verdades e conceptualizações ao promover a ligação de saberes e crenças e de toda uma multiplicidade de aspectos que estão na base da condição humana. Desta forma, o acto de busca da indefinição tem a virtude de “deslocar o olhar dos leitores”(Quelhas, 2009) da simples ficção para uma meta-ficção em constante devir, sobretudo no caso da construção da História enquanto Ciência Social. No final do século XX, este estilo adoptado por José Eduardo Agualusa constitui-se como uma espécie de meta-saber construído na e pela linguagem (3). O hibridismo discursivo em Estação das Chuvas facilita o levantar de problemas, o questionar e reformular a nossa própria formação ideológica. Partindo deste pressuposto, tudo o que é lido passa então a accionar uma leitura significativa, de forma a permitir formar ligações de sentido e permitindo a coesão de forma coerente na compreensão do texto. Isto obriga o leitor a um papel activo em permanente “diálogo” ou monólogo interior com o texto em si ao invés de se tornar mero receptor, isto é, um leitor passivo.

Por outro lado, a leitura de Estação das Chuvas permite uma compreensão privilegiada da história recente de Angola, ao abrir todo um leque de possibilidades de reflexão crítica face a personagens reais que participam na trama e que são integradas num contexto ou ponto de vista até então impensado.

Para I.Q. há textos na obra que indiciam claramente que a ditadura de Salazar “reforçou o aparato repressor após o fortalecimento dos movimentos angolanos de emancipação cultural no período após a II Guerra Mundial (3).” Portugal seria então, em meados do século XX, um país subdesenvolvido e essencialmente agrícola, mas na óptica desta investigadora, não poderia, por esta razão, desenvolver relações económicas pacíficas de forma a prolongar o domínio colonial ao longo de mais algumas décadas. O Continente Africano vai, assim ,construindo a sua emancipação ao longo das décadas de 1950 e 1960, mas a África Portuguesa só conhece o fim do domínio colonial português com a Revolução dos Cravos em 1974. Ainda no final dos anos 1950, dá-se uma forte repressão dos movimentos anti-coloniais em Angola.

Em Angola, a polícia politica portuguesa prendera dezenas de nacionalistas, numa operação que marcou o endurecimento do Regime de Salazar em relação às colónias e que ficou conhecida como “o processo dos 50” (Quelhas, 2009). No romance, Lídia do Carmo Ferreira faz parte do MPLA, movimento que se torna hegemónico após a emancipação, altura a partir da qual a poeta-historiadora se começa a afastar do partido. Para mais, a ausência de unidade entre as diversas facções politicas dava-se, segundo a mesma investigadora, em função de divergências políticas, ideológicas e étnicas:

«Os grupos agiam liderados por membros das élites angolanas que se colocavam como vanguardas políticas.”(3)

A independência de Angola dá-se em 1975 a 11 de Novembro, mas abrindo caminho à Guerra Civil entre facções políticas. O MPLA toma Luanda, apoiado por Cuba, tal como aparece expresso na narrativa de Agualusa, dá-se ainda a rebelião da UNITA, havendo ainda outras facções apoiadas por Mobutu do Zaire. Agualusa ocupa-se sobretudo em denunciar a violenta guerrilha que se estabelece entre os diferentes partidos, logo após a independência, comandadas por membros das élites crioulas. Da mesma forma, traça o cenário de uma Luanda completamente bestializada pela guerra, envolta num caos infernal que transparece na voz do narrador.

As ruas estavam imundas e matilhas de cães revolviam os destroços (…). Fui ao jardim zoológico que conhecia desde criança. Os soldados haviam morto as gazelas, os pavões e as avestruzes para os comerem; os elefantes, para lhes roubarem as presas; e os leões, os mabecos e os tigres, por puro prazer” (5).


Finda a Guerra Civil que opôs principalmente MPLA e UNITA, Lídia desaparece, antes de lançar o seu último livro de poesia. A estação das chuvas tarda em apagar o interminável incêndio feito dos ódios remanescentes da guerra recém-acabada. O país arde. E sangra.

Alexsandra Machado fala também de relação História-Literatura na narrativa pós-modernista a propósito de Estação das Chuvas. Para esta Autora, especialista em estudos literários e culturais, a principal questão a tratar em Estação das Chuvas prende-se com a forma como a relação entre História e o modo como esta é projectada em Literatura. Objectivo do estudo de Alexsandra Machado tem a ver com a necessidade de delimitar os caminhos escolhidos pelo romancista José Eduardo Agualusa, centrando-se em primeiro lugar na narrativa histórica e só depois no processo de construção da personagem Lídia do Carmo Ferreira. A. Machado é da opinião de que é notória, em Estação das Chuvas, uma transformação de factos históricos em ficção (4). Na óptica de A. Machado, as estratégias narrativas e discursivas utilizadas por Agualusa são um recurso que possibilita a inversão do processo de se fazer História ao desconstruí-la, partindo do ponto de vista dos vencedores para apresentá-la depois sob o olhar dos vencidos. A presença do passado é típica da literatura pós-modernista cujo objectivo consiste em proceder a uma avaliação crítica ao criar “um diálogo irónico com o passado” (Hutcheon, 1999), ou seja olhando o mesmo passado como um acto de releitura multiplicando sentidos e reinterpretações. Assim, A. Machado coloca em evidência “a necessidade de retomar o passado como uma forma de revitalizar certos factos pouco explorados afim de que se reconstituam as identidades culturais e nacionais dos países que foram colonizados por Portugal. E JEA faz isso vertendo os mesmos factos históricos para o cenário de ficção no romance. O trabalho de Agualusa consiste por isso em desconstruir uma visão mítica da história e dos heróis nacionais partindo da visão tradicional das figuras consagradas pela história oficial, agora vistas por outro prisma. Para tal, recorre à valorização do imaginário, à revitalização das crenças ancestrais, ao património imaterial da cultura local. Este tipo de estratégia não traz propriamente solução para questões nebulosas da História mas pode ajudar a ampliar a visão da mesma a partir da construção de uma nova forma de interpretar os dados. É-nos assim permitida a revisitação do passado veiculado pela Memória, passado esse que nos ajuda a compreender o presente, uma vez que a História se constrói a partir de “...visões e interpretações, ora transparentes ora obscuras, que devem constantemente ser repensadas, cifradas e decifradas afim de construírem e reconstruírem velhas concepções.”(4)

Conclusão

É notória a enorme profusão de dados e informação detalhada em relação às diferentes épocas históricas que perpassam nesta narrativa de Agualusa relativamente àquele país, às personagens reais, empenhadas na luta contra a ditadura. Segundo afirma o próprio Autor, refere-se muitas vezs quer a Mário Pinto de Andrade quer a Sophia de Mello Breyner (que só surge nas entrelinhas da poesia de Lídia e na voz de Lídia enquanto narradora: Sophia é o lado europeu de Lídia). Agualusa, projecta-se na figura do narrador, enquanto jornalista e repórter; e em Lídia enquanto escritor. Esta figura feminina é uma construção que revela não só o lado poético do autor mas também os traços de personalidade de vários ícones femininos da poesia lusófona ou Luso-africana. Isto nota-se na poesia e prosa de Lídia, recheada de elementos aquáticos (como a de Sophia) embora, por outro lado, próxima à terra e a à beleza telúrica e fértil do solo africano (como a poesia de Ana Paula Tavares).

O sonho-pesadelo de Lídia no início do romance, apesar da conotação poética e mítica que lhe está associada traduz já o receio, na protagonista, pela perda da própria vida. Um receio que se encontra latente, e do qual nos apercebemos devido ao facto de seu corpo se encontrar imerso num cardume de medusas, seres venenosos. Este receio de Lídia está ligado à sua actividade política, enquanto activista dissidente do partido no poder. José Eduardo Agualusa tomará então a iniciativa de efectuar uma regressão temporal de forma a contar a história de Lídia e de Angola ao longo dos últimos sessenta anos (de 1928 até à primeira metade da década de 1990). Uma história ficcional e pessoal que se entrelaça na história recente de Angola. E assim nos deparamos com uma Lídia ficcional a interagir e a reagir a pessoas reais que se envolvem activamente na saga política de Angola.

O autor dedica o romance a Mário Pinto de Andrade – poeta e activista político – é participante activo na narrativa o qual discute acaloradamente com Lídia as questões fundamentais relacionadas quer com temas políticos quer históricos quer artísticos.

José Eduardo Agualusa como autor pós-modernista põe em evidência a importância da produção poética, ao utilizá-la como força política e simultaneamente como pretexto para revisitar antigas tradições e mitos com intenção crítica para reescrever a História de Angola de um outro ponto de vista civilizacional como explica o fragmento poético de “Lídia”que se segue:

Olhávamos em volta
e não éramos capazes
de acompanhar o mundo.
Então começámos a escrever
poesia.”

Estação das Chuvas desmascara a sociedade angolana que pretendeu construir a utopia da libertação mas cujos fins foi perdendo de vista no processo de autodeterminação política.

O romance desenvolve-se no sentido de mostrar uma sociedade cada vez mais distópica pela representação alegórica de diversos tipos sociais, cada vez mais fragmentada, resultando assim numa polifonia que se forma a partir da coexistência de múltiplos registos e formas discursivas. Uma justaposição que torna possível o vislumbrar de todo dum contexto problemático com que se debate este tecido social e que aqui se revela em toda a sua complexidade. E neste prisma que o diálogo entre História e Literatura de que falam todos os autores mencionados se constitui como uma forma inovadora na construção de um romance que se quer como o espelho da realidade.

Estação das Chuvas” é, assim, o retrato do desmoronar de um sonho e a dissolução da utopia da Liberdade.

Cláudia de Sousa Dias
24.03.2012


Fontes:
  1. Luna, João Carlos e Silva, Lucas Victor; http://www.getempo.org/revistaget.asp?id_edicao=24&id_materia=96

    3. Quelhas, Iza; LITERATURA E HISTÓRIA, “GÊNEROS DISCURSIVOS E POLIFONIA EM ESTAÇÃO DAS CHUVAS, JOSÉ EDUARDO AGUALUSA”; http://www.achegas.net/numero/tres/iza_quelhas.htm
  1. Agualusa, José Eduardo; Estação das chuvas, dom Quixote