HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

My Photo
Name:
Location: Norte, Portugal

Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, September 28, 2013

Duas Mulheres em Praga de Juán José Millás (Temas & Debates)



Tradução de Jorge Fallorca


Juán José Millás nasceu em Valência, 1946, embora actualmente passe a maior parte do seu tempo em Madrid. É escritor e jornalista, colaborador no jornal El País. Foi galardoado com o Prémio Mariano de Cavia em jornalismo. Em 1974, recebeu o Prémio Sésamo pelo livro Cerbero en las Sombras e em 1990, o Prémio Nadal por Assim era a solidão.

O livro Duas Mulheres em Praga explora o tema da pulsão da escrita e do processo criativo, alimentado pelas obsessões de quem se propõe escrever algo. As personagens principais, formam uma tríade construída por uma mulher nos seus quarenta anos, de nome Luz Acaso, que decide recorrer a um atelier literário para escrever um livro sobre o passado que a persegue. Alvaro Abril é um escritor que vive à sombra de um já antigo sucesso literário e a sofrer no presente uma crise de criatividade. Decide, então, abrir uma oficina de escrita para conhecer vidas alheias que lhe possam abrir caminho à inspiração. Estes dois seres vivem obcecados pela mesma ideia: Alvaro, com a possibilidade de ter sido adoptado à nascença, baseando as suas suspeitas em indícios mais do que vagos e, Luz, a sua discípula, a quem a “luz do acaso” faz encontrar o seu mestre (o nome da protagonista não é escolhido aleatoriamente). Luz está gravemente doente e enceta uma corrida contra a morte na tentativa de legar algo para a posteridade: a sua história. Ou seja, um livro que será o filho que nunca (?) teve ou se teve não pôde criá-lo. Mas a fronteira entre realidade e ficção vai-se diluindo para estas duas personagens, à medida que vamos avançando na trama. A solidão é uma constante na vida de Luz Acaso que procura, através da escrita, reconstituir a família “perdida” e acaba os seus dias rodeada de calor humano e cuidados, envolta num sucedâneo da célula familiar que adquire a mesma importância de uma família de sangue.

A ideia fixa das personagens de Duas Mulheres em Praga em encontrar uma família supostamente perdida acaba por contagiar, também. uma terceira personagem, também ela dominada pelo impulso da escrita: trata-se da jovem que partilha o apartamento com Luz mas que está determinada em escrever uma história com “o lado esquerdo do corpo” e da vida. Literalmente e não só. O esforço que a obriga-a a portar-se como se não fosse dextra é enorme, mas também a faz colocar-se na pele do lado mais débil, fraco, do corpo físico e da social, olhando a vida do avesso.

A ideia fixa de adopção, que se torna cada vez mais obsessiva para estas personagens, está relacionada com um facto real, e relativo à História recente de Espanha. Juán José Millás interessou-se particularmente pelo assunto, tendo investigado a respeito no âmbito da sua actividade como jornalista. Na blogosfera há, também, uma enorme proliferação de artigos sobre o tema, que reportam a factos ocorridos a partir da década de 1970, logo após a queda do franquismo, até ao final da década de 1990. Um período de cerca de vinte anos ao longo do qual a Igreja Espanhola servia, alegadamente, de intermediária a um número avultado de adopções ilegais. Segundo as fontes recolhidas pelo depoimento de várias entrevistas, o processo envolveria instituições religiosas que ficavam com crianças nascidas de mães solteiras ou de parcos recursos financeiros, convencendo as mães de que as crianças recém-nascidas haviam morrido durante o parto, após o que eram contactados casais sem filhos, provenientes de famílias abastadas, sendo-lhes então vendida a criança.


Juán José Millás aproveita o assunto polémico para construir uma paródia, ou melhor uma tragicomédia, colocando esta obsessão colectiva e autofágica no centro da trama que invade, que por sua vez alimenta o pensamento das personagens transformando-se numa quase mania. Assim não admira que:

No momento em que Luz Acaso e Alvaro Abril se conheceram, as suas vidas enlearam-se como dois cordéis dentro de um bolso.

O mesmo acontece em relação às suas vidas reais (?), isto é fora daquela ficção que,dentro do romance de Millás se propõem criar, de Alvaro. Tanto, que no final do romance, já se torna completamente impossível desembaraçá-las. Nessa altura, já os seus escritos lhes proporcionam uma “terceira vida”, um mundo paralelo em que passam a viver, contendo elementos da realidade e ficcionais. A partir daí, será só isso que importa para eles.

A ironia ácida de Millás está, como não podia deixar de ser, patente no discurso do narrador e das personagens, o qual deixa entrever uma dura crítica à literatura de massas, pelo recurso à sátira, usando a figura de um escritor que, para sobreviver, corrompe ou, até mesmo, prostitui o conceito que tem de escrita literária:

A literatura do século XXI será a literatura industrial ou nada. É curioso que , enquanto o resto da realidade se encontra na era pós-industrial, a literatura acaba de entrar no mercado. Estaremos com cem anos de atraso, mas nunca é tarde.

Luz e a escritora que e escreve com o “lado esquerdo”, Maria José, habitam um apartamento numa estreita e sombria viela em Madrid, impregnada de uma luz cinzenta, como a luz que banha a cidade de Praga, num bairro empobrecido e enclausurado por ruas secundárias, também elas estreitas e escuras.

Vivo numa rua muito triste, que se parece com as ruas de Praga.

(…)


- Que sorte, vives em Praga sem necessidade de saíres de Madrid.

À estranha e nada ortodoxa interacção deste trio, junta-se ainda um jornalista que parece ser uma espécie de alter-ego do Autor, também ele interessado em explorar este tema das crianças adoptadas. Assim, ao chegar quase à recta final do romance o trio inicial transforma-se em quarteto, aumentando ainda mais a complexa a teia de enganos, apimentada pelo corrosivo humor negro de Millás. O discurso abunda em trocadilhos, situações truculentas, com desdobramentos de personalidade, vidas duplas, triplas e quádruplas, num contínuo jogo de espelhos. Dali emerge uma prostituta (será?) com vários heterónimos, como se fosse uma versão feminina de Fernando Pessoa mas dos anúncios das páginas das sessões do relax dos jornais, um romance de escritores com múltiplas facetas, máscaras e bigamias editoriais...

Duas Mulheres em Praga, isto é, numa viela escura de Madrid que se parece com Praga, é um livro onde o autor executa uma série de artifícios literários e jogos semânticos, criando um quebra-cabeças impossível de decifrar. Um pouco como no nosso quotidiano, sempre povoado de zonas sombrias que o sol nunca chega a iluminar. Da mesma forma, nas efabulações de Luz Acaso, durante as sessões de treino de narrativa com Alvaro Abril, Millás diverte-se jogar com o leitor o jogo de luzes e sombras entre verdade e ficção, ao criar uma heroína que, tal como a Penélope de Homero, desfaz à noite a trama que tece durante o dia, numa eterna busca de si mesma.

Assim é a ficção. A transfiguração de múltiplas vidas que todos os dias se nos apresentam na realidade, mascaradas.



Cláudia de Sousa Dias
27-11.2012-21.8.2013


2 Comments:

Blogger M. said...

Apetece-me ler e, sobretudo, aprender muito com este livro!
Beijinhos ;)
P.S. Não tenho lido nada...

12:22 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Eu também tenho lido pouquíssimo este ano...aliás vê-se pela data do primeiro rascunho dos artigos...!

1:10 PM  

Post a Comment

<< Home