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Thursday, June 30, 2016

"O Vendedor de Passados" de José Eduardo Agualusa (Dom Quixote)



De acordo com a nota da editora na contracapa desta obra de ficção de Agualusa, o protagonista desempenha um “estranho ofício” no qual "...vende passados falsos" a "clientes, prósperos empresários, políticos, generais (…) [e] fabrica-lhes uma genealogia de luxo, memórias felizes, consegue-lhes os retratos dos ancestrais ilustres".

Este é o terceiro livro de José Eduardo Agualusa a ser comentado neste blogue que chega até nós escrito num registo bastante mais leve que o romance em jeito de crónica Estação das Chuvas – obra marcadamente trangenérica, situada algures entre a ficção, a reportagem, o documentário histórico e o registo poético, é considerado talvez o melhor livro jamais escrito pelo autor – e do romance em prosa poética, com narrador autodiegético Um Estanho em Goa – obra que se caracteriza pelo teor marcadamente literário que lhe advém não apenas do discurso poético imbuído de melancolia do narrador mas sobretudo pelo diálogo inter-textual com obras de outros autores (uma característica recorrente na obra de Agualusa): tal como o poema “Endechas a Bárbara Escrava” de Luís Vaz de Camões ou o romance Nocturno Indiano de Antonio Tabucchi ou ainda pela alusão à heteronímia de Fernando Pessoa, através do desdobramento da identidade do protagonista. 

Contrariamente a estas duas obras, o O Vendedor de Passados embora se enquadre igualmente no género literário, apresenta-se num registo diametralmente oposto. A trama consiste numa farsa, de cariz vincadamente satírico, onde o narrador, tal como acontece em A Metamorfose de Kafka, em Flush de Woolf ou recuando até à Antiguidade Clássica, com as fábulas de Esopo, apresenta-se com uma morfologia animal mas assume um ethos que se manifesta através de um pensamento tipicamente antropocêntrico, ao projectar reflexões sobre o comportamento, cultura sentimentos e vaidades humanas. Este narrador nomeado Eulálio pelo protagonista, Félix Ventura, assume a aparência física de uma osga a viver na sombra e nas frestas das paredes da casa do seu hospedeiro, passando assim relativamente despercebido, afastando-se do lugar central da trama, enquanto focaliza o olhar em Ventura que passa a vida a estudar, investigar vidas alheias para vender passados ilustres por encomenda, desenhados à medida das expectativas dos seus clientes.

Ao avançar na trama, o leitor fica ciente que esta se estrutura na diluição das fronteiras do Tempo, dado que, o narrador, por ser uma reencarnação no corpo de um réptil  de uma alma humana que viveu na Angola outrora colonizada por portugueses, assume o papel de mediador entre as duas épocas. Eulálio é o ponto de contacto entre a Angola colonial, administrada localmente e governada a partir da metrópole por portugueses e a Angola contemporânea do pós-guerra civil ainda marcada pelas lutas intestinas que se seguiram depois da Independência. A Osga é a pedra de toque que marca a modalização temporal de forma a mostrar dois mundos paralelos: dois contextos sócio-históricos radicalmente diferentes que moldaram o país e que inscreveram o respectivo estilo governativo nas populações locais. A grande questão levantada por este livro tem a ver com o grau de influência, no estilo de vida das populações locais, por cada um destes estilos de governação, a par das consequências do mesmo choque cultural sofrido no passado e ainda avaliar a forma como estas duas maneiras de ver e estar no mundo (europeia e africana) conseguem hoje coexistir no mesmo território.

O Vendedor de Passados é uma obra literária, que apesar da aparente simplicidade, tem implícita, quer na sua estrutura quer na própria evolução das personagens, a relação dialógica de amor-ódio entre o impulso de preservação e transmissão da cultura ancestral (centrada da tradição oral e património imaterial) e a tendência para a sobreposição e domínio da cultura assente na palavra escrita, de raiz europeia e disseminada, sobretudo, durante a presença colonial portuguesa naquele país. Esta ideia é amplamente explorada pela investigadora Ana Bezerra da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Bezerra, 2011:133-134)1:

«Tecer considerações sobre tradição na África abre de imediato uma fenda entre o universo tradicional antes da presença do colonizador e o complexo de silêncio e reescritas que marca a presença da força colonial nesse ambiente, até mesmo no instante em que se fala de uma 'pós- colonização'. As imagens desse abismo são sentidas nessa prosa de Agualusa diante de uma burguesia que deseja rever seus passados, realizando praticamente uma apologia ao arquétipo lusitano.
(…)
Félix [Ventura] então articula via projeto escrito o apagamento da tradição africana e a invenção dos moldes europeus para essa parcela da população [a burguesia emergente do pós- colonialismo] que resolveu inscrever-se segundo o aval português.»

Bezerra (2011) defende ainda que a metáfora associada à figura arquetípica deste vendedor muito pouco ortodoxo é o recurso utilizado pelo autor para explorar o percurso histórico da colonização portuguesa em África estreitamente ligada à tentativa de apagamento do passado cultural ancestral africano. Um processo que em Antropologia Cultural chamamos de aculturação e que despoleta, não raro, todo um conjunto de consequências que são demonstradas com as atitudes das personagens que povoam o universo do romance O Vendedor de Passados:

«A escrita de Agualusa revela (…) a abertura de novos espaços no signo da pós-colonização, uma vez que pelo fluxo memorial se interroga o momento actual do ser angolano» (Bezerra, 2011:134).

E a forma de se proceder a este “interrogar-se” processa-se através:

«...[d]o diálogo entre o tradicionalismo e um mundo cada vez mais conectado em que as fronteiras outrora estabelecidas, parecem permeáveis, à escuta das culturas dos demais povos até mesmo para que a sua própria cultura torne-se audível, depois de um longo período de declarada marginalização frente ao universo cultural europeu.
(...)
Nesse sentido, a tradição é recuperada via memória., para depois se falar de um mecanismo de reconstrução e de multiplicidade, mesmo que seja pelo mecanismo do colonizador – a escrita – o que permitiria, de uma certa maneira, uma condição internacional de falar do seu território e para além dele (…)» (Bezerra, 2011:134-135).

Toda a construção do romance comporta em si a ideia de construção de identidade, remetendo imediatamente para a noção de persona, máscara, como se as personagens se submetessem a uma operação para mudança de rosto na mais radical das metamorfoses. Ou como acontece no teatro desde a antiguidade clássica e como acontece no dia-a-dia com a comunicação em que cada actor social representa um determinado papel. 

A edificação estrutural da trama assenta numa relação dicotómica a vários níveis, desde a fisionomia e genética de Felix Ventura, o qual é negro e, contudo, albino; a sua cultura emana directamente da raiz africana, mas está fortemente impregnada da influência da cultura europeia, sobretudo no tocante ao conhecimento da Literatura. Isto permite-lhe dispor da extensa bagagem cultural dotando-o de capacidades extraordinárias  de forma a poder desempenhar a profissão de vendedor/criador de passados falsos, construtor de identidades feitas à medida das expectativas dos seus clientes, como o mais especializado dos alfaiates. Um ficcionista pragmático, portanto. Os clientes de Félix Ventura são sobretudo homens que enriqueceram a uma velocidade meteórica e, não raro, de forma assaz suspeita, a procurar desesperadamente um passado limpo e ilustre, ambicionando um adequado (na sua óptica) reconhecimento social.

A forma como todos estes factores, influem hoje na transformação da mentalidade colectiva é amplamente explorada pela personagem Félix Ventura em seu próprio benefício, uma vez que este possui, simultaneamente, a capacidade de ouvir e a agudeza de espírito de um psicanalista e o oportunismo de um gestor de marketing que tenta vender um produto a uma dada clientela. É neste sentido que O Vendedor de Passados apela à “concepção híbrida africana com o corolário do processo colonial” (Mata, 2003:46, op.cit in Bezerra, 2011:134), sendo que na obra de Agualusa a tradição é recuperada pela via da memória, cujo veículo é a voz do narrador

O realismo mágico é outra característica a ocupar uma posição de destaque no romance, através da figura da osga Eulálio. Este é, nada mais nada menos, do que o invólucro físico que encerra um ser espiritual que atravessa o tempo e cuja memória, aditiva e intemporal, funde, por um lado, a magia de que se revestem os contos de tradição oral africana com o pendor surrealista e experimentalista do modernismo do início do século XX na literatura europeia (quem não se lembra da personagem Orlando de Virginia Woolf que atravessa os séculos assumindo corpos diferentes ou a narrativa a cargo da cadela Flush?).

Outro aspecto a destacar nesta divertida obra será a função arquetípica das personagens, como Buchmann, o ministro corrupto de conduta mais do que duvidosa, que busca um passado irrepreensível,  a fim de que lhe seja atribuído o respeito e prestígio social de que se quer objecto mas cujas atitudes o traem a todo o momento pois não resiste ao recurso a ameaças, veladas ou não para conseguir os seus intentos. Ou a fotógrafa Angela, personagem de cariz heróico, idealista, que procura a verdade para além das aparências, o oposto de Ventura, que a mascara por profissão. A única personagem que é caracterizada de forma positiva no romance. Agualusa tal como Umberto Eco concede essa homenagem às mulheres na sua obra ficcional.

Pode-se destacar ainda a forma coloquial como a osga Eulálio vai narrando a trama incorporando o léxico da língua local sem o destacar a itálico para reforçar ainda mais a ideia de sincretismo cultural através da fusão linguística no aspecto lexicográfico.

Por último, convém salientar o papel do narrador como testemunha e dinamizador da relação dialógica entre os dois tempos da trama, a mediação entre o ethos individual e colectivo das personagens secundárias ao invés de enveredar os esforços para o apagamento do primeiro que é o que tenta fazer o protagonista, Félix Ventura. Sendo a osga um narrador omnisciente esta acaba por ser, ela também, uma personagem, uma vez que além de narrar a trama na primeira pessoa também interage com o protagonista de forma marginal. Esta característica híbrida de narrador-testemunha coloca-a na categoria de narrador homodiegético.

Sendo assim, apesar de O Vendedor de Passados ser uma história “leve”, com um registo que facilmente se enquadra no género comédia satírica, uma leitura mais aprofundada mostra-nos que o tema nela tratado é de extrema seriedade: a questão ontológica da identidade colectiva.


Londres, 30 de Junho de 2016

Cláudia de Sousa Dias





1Bezerra, Ana Cristina Pinto, 2011, “Entre Memória e Tradições na Escrita de O Vendedor de Passados, de Agualusa” in Estação Literária, Londrina, Vagão-volume 8 Parte A, pp.132-141, dez.2011, Rio Grande do Norte.

4 Comments:

Blogger M. said...

Este tenho e li :)
Beijinhos, bom domingo!

1:00 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Ainda estou a editar o texto!

5:15 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

é o que dá quando se procura o que andaram os outros a escrever sobre o assunto para não andarmos depois nós a bater na mesma tecla...

8:12 PM  
Blogger Caronte said...

Premonitório. O falso Brasil de hoje, ē de passado verdadeiro

10:06 PM  

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