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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Friday, September 30, 2016

Contos Policiais - Vários Autores (Porto Editora)

Nota: Este texto esteve guardado em draft tendo sido publicados nove fragmentos na revista Caliban entre as Fevereiro e Maio de 2017. Esta é a versão integral do artigo, agora revista, em parte reescrita e, finalmente actualizada.




Esta edição de 2008 reúne um conjunto de textos de ficção curta em que a estrutura narrativa segue, com algumas variações, o modelo de desenvolvimento da trama inspirado no relatório de investigação policial. Neste tipo de histórias, o protagonista, cuja identidade poderá coincidir ou não com a do narrador, executa um trabalho de detective. Pedro Sena-Lino, o organizador desta antologia defende, no prefácio, que o sucesso neste tipo de ficção está directamente relacionado com a capacidade do narrador envolver o leitor na resolução do mistério, em que este último enceta uma espécie de diálogo (inter)activo com o texto. Pedro Sena-Lino na sua qualidade de escritor, crítico e investigador, entende que a intriga, no enredo típico do género policial, é construída "mimetizando a elaboração de um relatório policial”. Todavia, nem todos os autores deste livro seguem este último parâmetro à risca ou, pelo menos na sua forma prototípica. Por exemplo, alguns deles, apesar de obedecerem às características típicas do género policial enumeradas no prefácio, nem sempre dizem necessariamente respeito a um crime de sangue, como é por exemplo o caso do conto de Francisco José Viegas ou o de Gonçalo M. Tavares. Recorrendo à definição de George N. Dove, Sena-Lino distingue sobretudo quatro características principais que, no seu entender, não podem deixar de fazer parte de uma narrativa ficcional deste tipo: a) o lugar de protagonista deverá caber normalmente a um detective, com um papel de investigação identificável; b) o enredo principal da história terá de consistir num relatório de investigação do qual todas as outras narrativas [secundárias] dependem; c) terceiro, o mistério não poderá ser um desvio à normalidade do quotidiano ou um complexo enigma que parece aparentemente impossível de resolver; d) e, finalmente, a apresentação da solução, a qual poderá ser desconhecida para o detective protagonista, deverá, no entanto, ser revelada ao leitor. Entre narrador e leitor estabelece-se ainda uma relação de cumplicidade (a relação inter-activa de que falava há pouco) que funcionará como “dimensão intelectual do policial” actuando como “espelho negro da consciência” no leitor-alocutário em relação ao discurso do narrador-locutor.

A escolha dos contos para este livro teve em conta os diferentes subtipos deste tipo de ficção que é costume publicar-se em Portugal, resultando consequentemente este volume, num conjunto bastante heterogéneo. O organizador desta antologia, parte de uma perspectiva comparativista, acerca do estilo da ficção policial portuguesa e anglófona, focalizando-se sobretudo nas dimensões psicossocial e antropológica, ao considerar o factor cultural, como  o principal responsável pela discrepância de estilo de produção de ficção criminal entre estes dois universos linguístico-socio-culturais. Daqui conclui que as características discursivas da prosa policial lusa se apresentam bastante mais marcadas pelo estilo e pela variante estética, a qual surge frequentemente privilegiada, em detrimento da questão da resolução do crime. Sena-Lino completa esta mesma ideia ao colocar a ênfase no "peso moralizante da cultura protestante no lado anglófono [a] obrigar a um “plot” bastante mais orientado para o apuramento das responsabilidades e [...] reflexão da questões da moral, da ética e da consciência colectiva."

É talvez por isso que esta selecção de nove histórias concatena um espectro tão variado de perspectivas, onde cada autor tinge a sua narrativa com a gradação da tonalidade específica desta ou daquela influência literária que mais marcou o seu imaginário.


Passemos então à análise individual dos contos deste livro.

I — "A Desaparecida" de Dulce Maria Cardoso

Photo by Vitorino Coragem

Nesta perspectiva, o conto de Dulce Maria Cardoso pode ser tomado como paradigma ao apresentar-se como o mais fiel de todos a esta tradição de ficção policial anglófona — até porque se inspira num caso verídico de uma criança assassinada há pouco mais de uma década no Algarve e cuja confissão do crime foi extraída à mãe por métodos eticamente questionáveis. O caso foi largamente difundido nos media portugueses. Este plot segue o modelo de relatório policial à risca, apenas sofrendo um pequeno desvio no desfecho, de inspiração gótico-modernista, muito ao estilo de Virginia Woolf e Eudora Welty. Este elemento surge como um toque de surpresa e desconserto, tingido a narrativa com as cores do estilo macabro, a lembrar as longas-metragens de Alfred Hitchcock ou, mais ainda, alguns dos episódios da série televisiva Hitchcock Apresenta. “A Desaparecida” diverge, ainda, do modelo clássico e linear dos romances policiais de Agatha Christie ou Sir Arthur Conan Doyle por fazer lembrar as bonecas russas, isto é, um crime que esconde outro crime. Trata-se de uma história que se vai desdobrando nas suas múltiplas facetas, marcada por avanços e recuos, que apresenta várias hipóteses de investigação, pontos de vista, perspectivas e olhares sobre o mesmo acontecimento.

Logo na abertura do conto, o narrador começa por fornecer os detalhes de um crime que parece estar a decorrer em directo, em simultâneo com o tempo da locução. Há no texto marcas linguísticas que indiciam essa simultaneidade, como se o narrador estivesse a relatar algo enquanto desempenha o papel de testemunha ocular. Só mais tarde percebemos, com o desenrolar da intriga, que este narrador não é apenas uma testemunha: ele observa a cena sim, mas regista também os factos, de todos os ângulos e perspectivas, a fim de elaborar o relatório final que permitirá a obter a visão global dos factos. Fá-lo, no entanto, de forma pouco ortodoxa: utiliza a técnica cinematográfica de forma invertida, procurando o enquadramento da cena não partindo da visão panorâmica, passando sucessivamente por planos cada vez mais aproximados, até fornecer os detalhes mais horrendos da cena, mas executando o caminho inverso. Começa por mostrar ao leitor os pormenores mais macabros  do logo nas primeiras linhas do texto e, só depois, afasta a "lente", de maneira a permitir ao leitor perceber o que se está, de facto, a passar. As consequências de tal organização sequencial do discurso são as seguintes: em primeiro lugar, o leitor sente, antes de tudo, o impacto do sofrimento da vítima e, só depois, a reacção daqueles que estão à volta — personagens secundárias e figurantes —  e, por último, a visão do quadro total incluindo o cenário circundante. Esta organização sequencial do discurso, evita que o leitor se deixe influenciar por outros factores que possam desviar a sua atenção do que se está a passar com a vítima, pois é-lhe colocada diante dos olhos uma disposição cénica reveladora da percepção exacta das sensações desta pelo, captada pelo narrador de forma empática. Em terceiro lugar, o narrador orienta o olhar do leitor face à personagem para a qual convergem todas as atenções das restantes personagens e figurantes, conferindo-lhe centralidade, reconstituindo assim com maior precisão os detalhes da cena. Esta forma de focalizar a visão dos factos na narrativa deixa entrever a preocupação principal do narrador: facultar ao leitor uma visão dos acontecimentos o mais detalhada possível, sem que esta seja toldada pela passionalidade dos outros participantes na cena. Este tipo de focalização torna o leitor solidário para com a mulher, vítima das sevícias dos "justiceiros", sem deixar margem para dúvidas quanto à perspectiva humanista do texto:

«1. As moscas não paravam de volta dela. A mulher abanava a cabeça, mexia o corpo em gestos bruscos mas as moscas já não fugiam. Deixavam-se ficar pousadas e a mulher sentia-lhes as patas a fazerem-lhe comichão, de vez em quando as picadas. A mulher estava de pé. Tinha as mãos algemadas atrás das costas. Estava ferida e não dormia há mais de dois dias. Respirava com dificuldade. O sol ardia-lhe no corpo especialmente nas partes que a roupa não cobria. As moscas lutavam pelos sítios onde a carne inchara e o sangue ainda não coagulara. A mulher estava de costas para a única árvore, que havia naquele baldio. Tanto a mulher como a árvore escolheriam acabar naquele instante. Mas o corpo da mulher estava demasiado habituado a resistir. As raízes da árvore também eram demasiado fortes e longas.

Os homens estavam perto da mulher, atentos à cova que se abria. Eram quatro mas só um deles cavava. Mantinha-se dobrado, a olhar para baixo, os gestos concertados. Transpirava muito. A pá era de metal e brilhava quando o sol lhe incidia em determinado ângulo. Nessas alturas os outros homens tinham de desviar os olhos. A mulher não. Estava quase cega. Os reflexos do sol no metal não a incomodavam. Ao lado da cova ia crescendo um monte de terra seca e amarela. A mulher desejava que por dentro a terra fosse escura e fresca e que lhe fosse permitido deitar-se nela. Sentiria menos calor. Mas dentro da terra só havia a mesma secura. A mulher e a terra tinham muita sede. E nenhuma delas sabia como desistir da vontade de beber.»

No primeiro parágrafo surgem, por esta ordem: moscas, feridas, mulher, árvore e, por último, o terreno baldio: o cenário nuclear da cena com a protagonista. Há uma mulher sem nome, que está só, apesar de rodeada de gente: os homens que a torturam e a multidão que assiste, a alguma distância, ao seu ordálio sem intervir. A solidão da mulher identifica-se com a da árvore, também ela isolada no baldio. E a mulher, tal como a árvore, tem raízes naquele local. Uma encontra-se afastada da floresta; e outra, à margem da sociedade.

A mulher sem nome está a ser torturada, física e psicologicamente, por um dos indivíduos, o que chefia o grupo de linchamento. Este grupo é, todo ele, constituído unicamente por homens, identificados, não pelo nome, mas por um determinado sinal ou traço físico:

«A mulher conhecia alguns dos homens que ali estavam. Um deles, o mais alto de todos, aproximou-se dela, a fumar, queres?, perguntou estendendo o cigarro. A mulher não respondeu, mas mesmo assim ele pôs-lhe o cigarro entre os lábios feridos. Dá uma passa, disse. Ela deu. O fumo arranhou-lhe a boca e o nariz feridos e ela tossiu. Outra, disse o homem. Aproximou o cigarro da boca da mulher mas foi o polegar dele que lhe abriu os lábios. Enquanto o polegar se entretinha a amachucá-los, o homem sorria. A mulher nada fez. Depois o homem enfiou o polegar todo dentro da boca dela e pôs-se a deslizá-lo deliciadamente para dentro e para fora. Gostas, não gostas? A mulher nada fez. O homem disse, tens de me dizer o que é que o caralho do teu irmão tem que o meu e o dos outros não têm, tens de me dizer. O homem tirou o polegar de dentro da boca da mulher. Metes nojo, disse o homem, apagando o cigarro entre as mamas dela. A mulher gritou de dor. Um dos outros homens, o que tinha o casaco vestido e era o chefe, voltou-se na direcção deles, não quero ouvir um pio, nem mais um pio. O homem alto encheu a boca de saliva para cuspir sobre a mulher. Depois voltou para junto dos outros.»

No grupo restrito de homens encarregue da missão de torturar e, depreende-se, de executar a mulher, estão vários elementos, identificados, todos eles, não pelo nome, mas por uma característica física ou de vestuário. Esta forma de identificação dos participantes na cena demonstra a não ligação pessoal do narrador a qualquer um deles: “o mais alto”, “o mais gordo”, “o que tinha o casaco vestido”, “o que tinha o nariz ligeiramente torto”, “o das falanges peludas”, “o da cicatriz na testa”, “o homem das unhas compridas” e “o que cheirava a transpiração”. São, todos eles, segundo os sinais que os identificam, de aspecto grosseiro e maneiras rudes, mas a quem é reconhecida autoridade (seja ela oficial ou não) e agem como se formassem um pelotão de fuzilamento ou linchamento, apoiados pela multidão em fúria, que observa à distância e exige um castigo exemplar. Ao mesmo tempo, apesar de aparentemente não haver também qualquer ligação pessoal do narrador à vítima, há no discurso deste sinais de empatia para com a mulher que está a ser objecto de tanto ódio. O narrador nunca deixa de fazer notar a indiferença da mulher por tudo o que se passa à sua volta, excepto os estímulos que lhe causam sofrimento físico intenso e imediato (aliás, a sua confissão foi obtida sob tortura), como se já não lhe importasse o destino, como se já toda a esperança se tivesse esgotado.

«Enterrem-na viva aí mesmo, foi o grito que se ouviu. Os homens olharam na direcção do grito. A mulher não. Devíamos deixá-los entrar, arrumava-se o assunto num instante, disse um dos homens, o mais gordo de todos. A uma distância mais de quatro vezes àquela que ia deles até à árvore, estava um amontoado de pessoas por detrás de umas barreiras. As barreiras eram guardadas por outros homens como aqueles. O homem que tinha o casaco vestido aproximou-se da mulher e disse, nós tratamos disto, quem manda aqui somos nós. Na noite anterior a mulher tinha confessado o crime, fui eu sim, fui eu que a matei.»

Na multidão que assiste ao “espectáculo” estão, ali sim, em segundo plano, várias mulheres, que exortam os executores (talvez para que se veja o quanto são cumpridoras dos preceitos morais e não lhes aconteça o mesmo que à que está agora a ser torturada). Elas participam no acto mas não de forma activa. Não têm poder de decisão ou de tomar iniciativa por si, o que indicia uma sociedade extremamente conservadora do tipo patriarcal. Também elas, tal como os executores, têm um aspecto rude, grosseiro, parecendo levar uma banal vida doméstica, com pautada pela monotonia e poucos recursos económico-financeiros. Transmitem uma imagem de si de condição social modesta a viver um quotidiano sempre igual. São identificadas por traços físicos que as distinguem não tanto geneticamente mas, sobretudo,  por denunciarem um estilo de vida: “a mulher do chapéu de palha” (dá ideia de que anda muito a pé e ao sol), “a mulher dos lábios pintados de cor-de-rosa” (transmite a imagem de alguém que se esmera no cuidado do aspecto exterior mas pretende ser discreta e não ser mal interpretada, tomada por uma mulher que deseje chamar a atenção masculina em demasia), “a que tinha os cabelos presos num rabo de cavalo de fita amarela” (o cabelo preso, com um atavio sem gosto, indicador de que não tem dinheiro para ir à cabeleireira), “a do cabelo armado com mise” (mulher que terá já uma certa idade, uma vez que não é comum ver-se um penteado com mise, típico dos anos 1960, em mulheres jovens); e ainda as que se encontram à saída da mercearia como “a que tinha a embalagem de detergente da loiça na mão”, “a que cheirava a lixívia”, “a do leite de suplemento de cálcio”, “a dos iogurtes com sabor a morango”.  Todas elas, mulheres que parecem ter interrompido os afazeres da vida doméstica, da sua rotina, mediante um acontecimento inusitado (aqui um pequeno desvio aos parâmetros de Sena-Lino), o qual será alvo de comentários por vários dias.

Entre a multidão está, também, um jornalista, acompanhado dos restantes membros da equipa, a filmar a cena e a dar instruções aos espectadores sobre a forma como se hão-de posicionar para conseguir melhor enquadramento.

A narrativa é, a dada altura, interrompida por um episódio de regressão (analepse) temporal cujo objectivo é mostrar o ambiente social e familiar em que vivia a criança, vítima do primeiro crime, do qual a protagonista é acusada. Esta reconstituição é feita pelo ponto de vista de um dos “justiceiros” e representa a forma como mãe e filha  eram olhadas pela comunidade: duas pessoas oriundas de um meio social pobre, numa família desestruturada. Este ponto de vista dá a entender que esta personagem e locutor acredita ter sido a criança explorada (provavelmente através do recurso à mendicidade) e maltratada pelos adultos. Ou seja, o narrador secundário (ou Locutor2) mostra-nos, através desta narrativa embutida no discurso do narrador (L1), como imagina ser o quotidiano doméstico da família nuclear da criança assassinada.

O mesmo narrador (L1) confronta ainda este ponto de vista com outro, mais neutro e abrangente, que revela ser a criança e a mãe, no passado, tratadas como uma espécie de párias pela comunidade, ou seja, por aqueles que agora assistem ao julgamento sumário da mãe. É um ponto de vista com o qual L1 se identifica o que explica em parte a empatia com a protagonista. Neste ponto de vista está ainda contida a suprema ironia do conto, a mostrar a forma como é desmascarada a hipocrisia de toda uma sociedade, imersa num profundo egoísmo enquanto professa uma moral vazia, pois as mães que exortam à condenação da mulher alvo das sevícias dos seus carrascos, em nome da justiça para com a criança assassinada, não desejavam, durante  a curta vida desta, o contacto da mesma criança com os próprios filhos. É daqui que nasce ainda um quarto ponto de vista: a construção social, por parte da comunidade, acerca da imagem pública da criança e da própria família, e o sentimento de repúdio e exclusão desta por parte da comunidade.

A última cena dá-nos ainda a quinta e última perspectiva dos acontecimentos, dada a posteriori pela própria criança, a falar no presente, ou melhor, numa outra dimensão fora do nosso espaço físico e do nosso tempo. Esta particularidade no desenvolvimento da narrativa revela-se ainda desconcertante pelo o toque inusitado no desfecho da narrativa tingindo-a da influência gótico-modernista com um arrepiante toque de macabro.

O conto de Dulce Maria Cardoso, é sem dúvida o melhor de todo o volume pela forma audaz como aborda a ferida aberta que é o justicialismo em Portugal e, principalmente, por colocar de forma tão pertinente o papel dos media na condução e conversão de uma investigação policial em reality show, em nome das audiências. A linguagem crua e a frieza objectiva com que, ao longo do conto, são descritas todas as cenas que compõem a arquitectura da trama, fazem com que esta seja a história ideal para abrir este livro, ao exibir a combinação perfeita entre estilo e desenvolvimento do plot.


II  —  "O Manuscrito de Buenos Aires" de Francisco José Viegas

Photo by Fernando Dinis (retirada do Weblog The book Lovers)



Francisco José Viegas é um autor com uma vasta obra, já publicada, dentro do género policial. Mas os leitores que ainda não conheçam as histórias do detective Jaime Gama, têm aqui a oportunidade de verificar  que, tanto o estilo, como a natureza do crime aqui tratado, apostam na resolução de um enigma onde a apresentação da solução difere radicalmente da forma de construir a narrativa policial escolhida por Dulce Maria Cardoso. Se, por um lado, a narrativa de “A Desaparecida” nos é dada através de um olhar essencialmente feminino (embora o narrador possa não ser, necessariamente, uma mulher),  o conto de Francisco José Viegas focaliza-se na perspectiva tipicamente masculina de um “detective-intelectual”, tal como é habitual nos seus romances policiais. Contudo, o detective de "O Manuscrito de Buenos Aires" não é um inspector a trabalhar numa esquadra, integrado numa equipa encarregue de desvendar um crime, mas sim um investigador académico, cuja missão é a de descobrir o paradeiro de um manuscrito antigo e identificar a respectiva autoria, a qual, ao que tudo indica, poderá ser da pena de Miguel de Cervantes: um capítulo perdido do clássico Don Quijote de la Mancha. O olhar do narrador de Viegas, está muito distante do narrador da autora de “A Desaparecida”, projectando, pelas razões que iremos explicar, uma ausência de empatia com as figuras femininas que vão surgindo no conto, algo que se faz notar até mesmo nos papéis periféricos que lhes são atribuídos.

Ao reportarmo-nos, mais uma vez, à introdução de Pedro Sena-Lino, percebemos que “O Manuscrito de Buenos Aires” é uma história onde o discurso narrativo aparece muito mais veiculado para a qualidade do estilo literário e para componente estética e ensaística do texto, do que para o plot ou para a espessura da dimensão psicológica das personagens. Todavia, apesar da ênfase na componente estética na construção desta narrativa policial, FJ Viegas não se furta a desafiar também os limites que classicamente definem este género de ficção: ao invés de optar por um crime de sangue ou um roubo mediático, crimes violentos que costumam aparecer nos seus romances, opta antes por colocar um “detective académico” na peugada de um documento raro. E, só por acaso, descobrirá-se-á, posteriormente, tratar-se de um crime de burla autoral.

Outra particularidade que desafia a classificação deste tipo de conto quanto ao género, reside no facto de a hibridez de “O Manuscrito de Buenos Aires” apresentar, por um lado, elementos característicos da ficção policial, como é o caso da resolução de um enigma — provar a autoria de um misterioso texto — e de exibir, como contraponto, a faceta de narrativa de viagens, expressa numa prosa onde constam belíssimas e  detalhadas descrições de ambientes e lugares pitorescos da capital Argentina, lugar onde este detective pouco ortodoxo acredita encontrar-se o referido manuscrito. À atenção dada ao cenário relacionado com a história e cultura locais, junta-se ainda, a componente de ensaio literário, pela forma como é convocado o diálogo inter-textual com a obra dos vários autores directamente mencionados ou simplesmente aludidos no conto. Nele, é possível facilmente identificar a referência à obra de Arturo Pérez-Reverte (logo na dedicatória), a alusão evocativa à vida e obra de Jorge Luís Borges (pelas reminiscências que provocam no narrador o cenário à chegada onde o protagonista observa um velho cego, guiado por uma jovem vestida de forma deslocada à sua faixa etária, lembrando o poeta, também cego, guiado pela sua jovem esposa), ou Cardenas, além do já referido Cervantes:

«Aos sábados de manhã havia esse ruído permanente que o traía: uma espécie de ventania vinda do canal, os táxis que avançam até às portas de San Telmo, cafés abertos desde muito cedo, os jornais abertos sobre a mesa do café de La Plaza — e os alfarrabistas que, na verdade, detestava por serem tão ruidosos. Era o seu sexto sábado em Buenos Aires desde que decidira levar até ao fim a pesquisa e, como acontecia todas as vezes, encontrava aquele cego passeando ao longo da Calle Defensa, misturando-se com os turistas, guiado por uma jovem demasiado séria, de cabelos compridos e vestida como há muitos anos deveria estar vestida uma mulher mais velha, a quem ele segurava pelo braço como se fosse ele a dirigir-lhe os passos, e não o contrário (…).

Tinham-lhe dito que era um poeta. Melhor, que fora um poeta — não publicava um poema há mais de trinta anos embora fosse cumprimentado pelos outros poetas e o seu nome figurasse em dois dicionários enciclopédicos sobre a Argentina do século XX.

(…)

Cervantes não era uma personagem cómica. Ele pensava que sim. E fora Cervantes que o trouxera a Buenos Aires. O capítulo XXIV do Livro Primeiro do Quijote lançou a primeira das suas suspeitas sobre os amores e as histórias cruzadas de Gardénio, Lucinda, Doroteia e D. Fernando, faziam supor que Cervantes, o cómico, e não Cervantes, o eterno, tinham brincado com a própria literatura».


A história entra, porém, a dada altura, no registo cómico. No entanto, aqui, o alvo da sátira não é exactamente o narrador, ao contrário do que sucede no conto de Rui Zink, (o qual também recorre ao diálogo inter-textual com a mesma obra de Cervantes ,mas colocando em paralelo, o seu protagonista à personagem cervantina do Don Quijote), ou de Ricardo Miguel Gomes e Valter Hugo Mãe (os quais se empenham em utilizar o ridículo para criticar determinados tipos sociais), mas sim as figuras femininas que circulam à volta do detective. A forma como o protagonista se relaciona com as mulheres que vão surgindo no conto e se cruzam no seu caminho, caracterizando-as desfavoravelmente, onde as marcas discursivas da locução do narrador confirmam este distanciamento psicológico do protagonista face às mulheres. Este facto encontra-se de tal forma inscrito no discurso ao longo do conto que, mesmo quando há proximidade física entre o protagonista e as figuras femininas que nele participam, a intimidade nunca se consuma, acabando por resultar num ethos desfavorável para o protagonista.

No entanto, o narrador de terceira pessoa, apesar de se encontrar empaticamente próximo do protagonista, não é totalmente contagiado por esta imagem desfavorável.Trata-se de um narrador omnisciente, porque conhecedor em profundidade dos processos mentais e a forma de reagir emocionalmente da sua personagem principal, citando-lhe o pensamento, embutindo-o no seu próprio discurso em quasi-pec, mas sem necessariamente subscrever o ponto de vista da mesma personagem. Contudo, há passagens no texto em que a forma de olhar os outros por ambos os enunciadores (narrador-locutor e personagem) quase não se distingue, sendo extremamente difícil atribuir a responsabilidade do enunciado quer a um quer a outro: todavia, este projecta para o mundo, uma imagem de si bastante que se assemelha muito mais a um  don Juan do que de um don Quijote; ou seja, projecta um ethos de alguém para quem as mulheres são apenas belos objectos, ou um desafio de sedução, mas a cuja mente dificilmente consegue aceder, reforçando-lhe mais ainda a imagem de sedutor solitário:

«Divorciado, os filhos na universidade, a vida sentimental reduzida a encontros de ocasião com mulheres bibliófilas ou moderadamente assexuadas, pôde partir sem deixar atrás de si uma ausência muito notada.»

O conto apresenta ainda algumas marcas de realismo mágico, tão caro à literatura sul-americana (como se vê logo no início do conto), tais como a visualização ou recriação  por via do sonho evocativo ou rêverie,  de quadros que remetem para o quotidiano de escritores já desaparecidos, como acontece com a cena que traz à memória reminiscências do poeta Jorge Luís Borges já cego, nos últimos anos da sua existência, acompanhado da sua jovem esposa. Pode-se dizer que este conto será talvez um dos mais belos exercícios de estilo, do ponto de vista exclusivamente plástico, de todo o livro.



III  —  "Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste" de Gonçalo M. Tavares



Photo: imagem retirada do weblog "conversa avinagrada"



O conto de Gonçalo M. Tavares para esta antologia está já mais próximo da primeira história que abre este livro, apesar das óbvias diferenças em relação à temática e à construção da narrativa, pois ambos utilizam a técnica cinematográfica de aproximação-recuo dos planos e enquadramento da cena para melhor guiar o olhar do leitor-ouvinte. Gonçalo M. Tavares fá-lo contudo da forma clássica, partindo da visão panorâmica até chegar ao detalhe, ao contrário do que fez a autora de "A Desaparecida".

“Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste” é uma história bi-direccionada, tal como indica o título, e contada por um narrador omnisciente. Trata-se, na verdade, de duas histórias, dois planos narrativos paralelos, que nos são apresentados de forma sequencial e em alternância. O plot consiste na narrativa de duas viagens, uma em cada sentido. A cada uma delas corresponde um crime, cuja trajectória é reconstituída seguindo o percurso dos respectivos infractores, os quais acabam por se cruzar, na fronteira entre a Hungria e a Roménia. Neste encontro casual dar-se-á o desfecho da história. O texto contém um cariz marcadamente filosófico, questionador, abrangendo perspectivas que remetem para a Filosofia do Direito Penal e, nas entrelinhas, da Política, pela alusão a toda a problemática que envolve a proporcionalidade entre o delito cometido e a respectiva punição, em claro diálogo inter-textual com o romance “Crime e Castigo" de Fiódor Dostoievski.

O tema central gira à volta da forma como o as instituições do Estado lidam com o tratamento de dois crimes de natureza diametralmente oposta: sendo um deles apenas uma fraude burocrática (alguém que tenta fazer chegar a casa o cadáver de uma mãe morta de causas naturais, sem passar pelos complicados e dispendiosos trâmites burocráticos, que implicaria a trasladação do corpo de um país para o outro);  e, em contrapartida, do outro lado da fronteira, dá-se um outro crime, à primeira vista, um vulgar roubo de uma peça de museu, mas que acabará por assumir a natureza de um crime político, pois trata-se de uma tentativa de apagamento de uma faceta do passado histórico daquele país, marcado pela uma fortíssima repressão a nível político e ideológico. São dois crimes de gravidade e natureza diversas, mas com consequências bastante dramáticas para qualquer um deles caso seja desmascarado.

Outro factor de originalidade neste conto de Gonçalo M. Tavares para uma antologia como esta consiste no facto de a a história estar a ser contada por um narrador-testemunha cujo ponto de vista se aproxima, algo empaticamente, do ponto de vista de quem é acusado como se vê no excerto a seguir:

«I.

Chegados de Budapeste. Dois vultos de noite. Duas manchas escuras sobre uma grande mancha escura. Mas as duas pequenas manchas escuras agem, têm um objectivo; a noite, essa — a grande mancha escura — tudo indica que não; não tem objectivo.

Primeiro destroem o cadeado. A fechadura da porta do armazém é robusta. Utilizam o fogo. Depois um empurrão entusiasmado, dois corpos contra um portão alto e largo, mas já sem fechadura. Igual a uma pessoa indefesa: um portão indefeso; fechadura partida.

Os dois homens entram para um novo escuro, um escuro mais pequeno, fechado, organizado. É dentro da noite, mas fora da noite.

Sabem bem o que procuram, os dois homens. Há muitos objectos guardados no armazém, mas os dois homens não vêm visitar, não estão perdidos. Já sabem o que querem. Ali está.

A luz da lanterna torna evidente o que do outro lado a enorme estatura da coisa torna também evidente. Luz de um lado e proporções gigantes do outro. Está ali, murmura um dos homens.

Aproximaram-se. Tiraram tudo da frente.

Tarefa difícil. Muitos objectos guardados. Objectos valiosos — algumas peças em ouro. Mas não era disso que eles estavam à procura. O que agora, sim, tornava mais estranha esta incursão nocturna, este assalto: quando alguém não quer ouro, e o despreza, então quer algo ainda mais poderoso, e tal desejo assusta. Não é precipitado recear os homens que ignoram o ouro; faz sentido receá-los mais ainda que aos homens obcecados por esse metal.»

O narrador utiliza o close up e as variações de intensidade da luz para ir gradualmente revelando os detalhes da cena e as intenções das personagens. A revelação gradual desses mesmos detalhes deixa entrever a intenção do narrador em demonstrar ao leitor-alocutário a intenção dos actuantes, das quais é conhecedor, realçando o desinteresse dos assaltantes por objectos tradicionalmente valorizados e facilmente transformáveis em dinheiro. Não se trata, pois, de ladrões vulgares, mas sim de criminosos com um fim específico, um móbil preciso. São pessoas que delinearam meticulosamente um plano. Trata-se de um crime premeditado e executado por profissionais que estão dispostos a levar a sua missão até ao fim.  Um furto qualificado, mas que tem por base uma motivação superior que transcende fins materiais. Esta chamada de atenção por parte do narrador, tem o efeito de aumentar o a tensão e o suspense. Por outro lado, a ausência de motivação pelo simples desejo de obtenção de lucro imediato não ter o poder de os desviar dos seus objectivos, perante o grau de dificuldade de execução e a gravidade das consequências caso sejam descobertos, indicia um certo grau de incorruptibilidade distorcida, a que se junta também o foco e a obstinação, como sendo as características dominantes no ethos destes dois assaltantes.

O segundo plano narrativo é desenvolvido em alternância face a este que acabámos de descrever. Ambas as tramas se desenrolam, no entanto, de forma linear e progressiva (embora na segunda seja mais evidente a técnica do flash-back, utilizada pelo narrador de terceira pessoa, para se perceber como se chega ao momento presente): enquanto a primeira a narrativa flui como se o locutor estivesse a explicar a um ouvinte uma cena que está a ver em tempo real numa câmara de video-vigilância: a segunda é elaborada de gerar o sensação de movimento e velocidade no leitor, que se sente como se estivesse a assistir à segunda cena a bordo do comboio, recorrendo à técnica do flash back.  O efeito desta estratégia discursiva e desenvolvimento do plot no leitor ou ouvinte é como se este estivesse a assistir a um filme onde se desenrolam duas histórias paralelas que, a dada altura, irão convergir, num dado ponto de intersecção. O comboio funciona aqui como a sala de cinema onde narrador-locutor e ouvinte-alocutário assistem, da janela, ao cruzamento de ambos os veículos que contém cada um dos protagonistas na fronteira húngaro-romena. Trata-se uma construção narrativa indubitavelmente inspirada na sétima arte.

O discurso deste segundo plano narrativo é composto por frases curtas e incisivas, de ritmo, rápido e sincopado a espelhar não apenas a sensação de velocidade que traduz a angústia a pressupor empatia com os protagonistas que se dirigem à fronteira. A história aproxima-se do desfecho a todo o vapor: o próprio título toma quase que a forma de uma onomatopeia a lembrar o movimento de uma locomotiva: Buca-reste-Buda-peste; Buda-peste-Buca-reste.

Este é um conto em que é notória a precisão do raciocínio lógico transmitida pelo narrador que se alia ao seu vasto conhecimento enciclopédico:

«A

De comboio entre Bucareste e Budapeste

(…)
Musculatura e depois velocidade exterior: metros por segundo. Entre a sua mão e o comboio que pára, a atenção de Miklós, hesitando. Uma certa dor furiosa e do outro lado uma novidade. Onde estamos?
Essa pergunta sempre me fascinou: onde estamos?
Apesar de tudo, não podes fazer perguntas e partir de um sítio estranho ao teu corpo. É o teu corpo que pergunta.
Infantil. Tirar medidas do que te assusta. Por exemplo: o comprimento do demónio. Apaziguas um milhar de medos com uma única régua; mas somos mais racionais porque receamos.

(…)

26. Sabe que a sua mãe morreu. Recebeu ontem a notícia. Quer trazê-la de volta para a sua terra. Enterrá-la junto a casa, em Bucareste, de onde veio.

E onde está a sua mãe morta? Em Budapeste, no cimo destas escadas.»



Toda a postura do narrador, ao seguir os percurso de ambos as personagens que executam um desvio à lei tem como efeito a projecção de um ethos de mediador: este narrador actua como facilitador da captação de benevolência do leitor face às suas personagens. Trata-se, mais uma vez, à semelhança do conto de Dulce Maria Cardoso, de uma perspectiva humanista,  cuja intenção é a de sensibilizar o leitor para o conceitos de empatia e equidade quando se fala de justiça.

A explicação da natureza de ambos os crimes é feita de forma a assumir contornos de alguma benevolência, mediante postura de pensamento crítico e abertura ao questionamento filosófico da natureza humana, como se vê no excerto a seguir:

«E.

É proibido transportar um cadáver no banco de trás de um carro, mesmo que alugado, porém, cobertores e jornais tapavam qualquer vestígio e Miklós pusera ainda a música do rádio muito alta, como se o som pudesse atenuar em parte o cheiro que se começava a sentir.

A verdade é que, pelo menos para ele, parecia resultar.»

Ou seja, o acto, para todos os efeitos só será crime se for descoberto. Na verdade, o delito do protagonista consiste no desvio a uma norma, uma doxa, legitimada pela sociedade ou pelo governo que a representa, mas esta personagem decide obedecer a um código de conduta paralelo à norma oficial, a uma norma só sua, uma paradoxa. Em ambos os casos, quer Miklós, que transporta a mãe morta de Budapeste para Bucareste, a terra natal, quer os dois assaltantes que transportam a estátua de Lenine, decapitada, em sentido inverso, não vêem a lei oficial como legítima, por considerá-la pouco humana. Mas o último enunciado indicia, que as coisas poderão não correr bem no final.

Os dois assaltantes tratam a estátua de Lenine com muito pouco respeito histórico, não como um vestígio ou ícone de uma época, mas como símbolo de algo que se lhes afigura afrontoso, uma memória de uma violenta repressão ideológica exercida sobre um povo. Consideram, por isso,  estar a fazer um favor à sociedade. Contudo, aos olhos do Estado cometem uma fraude, um crime histórico que, se descoberto, terá consequências graves:

«VI.

Com a cabeça era diferente. Ninguém por dinheiro algum se deixaria subornar para deixar passar a cabeça de Lenine. Não se tratava de uma questão de preço. Era uma questão que associava uma consciência histórica à percepção clara de que seria um crime inadmissível ser subornado para deixar passar, de um lado para o outro da fronteira, a cabeça de Lenine.»

Por último, o fio condutor que une ambas as narrativas reside na forma de tratamento de ambos os delitos, sendo que no último momento a narrativa, esta sofre uma inflexão a desembocar num desfecho inesperado, apenas para confirmar a mestria como Gonçalo M. Tavares domina a arte da ficção curta.


IV  —  "Ao Seu Alcance" de Hélia Correia

Photo: imagem retirada do weblog BibliotecariodeBabel

 O conto de Hélia Correia está de acordo com Sena-Lino, em termos temáticos, mais próximo da tipologia de conto policial, mas não em termos formais, onde segundo o autor do prefácio, é o elemento do estilo que prevalece em detrimento da narrativa.

Trata-se, pois, de um conto que pode ser classificado como sendo de género híbrido. Será um policial sim, uma vez que o tema central é um homicídio camuflado de suicídio, porém, o discurso do narrador assemelha-se muito mais a um ensaio, que poderia servir de base a uma dissertação de um investigador de ciências sociais, especializado em criminologia, sobre um tipo de crime específico e as causas sociais que o despoletam. A intenção que se esconde por detrás de um texto como este será a de levar o leitor-alocutário a um conjunto de interrogações sobre as pequenas nuances que distinguem um acto que tem por base a decisão de alguém decidir terminar a própria vida, voluntário e, portanto, um suicídio; ou, pelo contrário, o produto final de manipulação alheia, o que já cai na categoria de homicídio, crime, portanto. O texto de Hélia Correia está, por isso, muito mais próximo da categoria de ensaio, a incluir numa tese científica sobre um tema que tem vindo a apaixonar sociólogos e psicólogos, mas a que se agregada a perspectiva da Antropologia Social, onde a voz do narrador adquire um tom documental, situado na zona fronteiriça da escrita diarística de um caderno de campo e de um docimentário, muito mais do que a um relatório policial:

«Aqueles crimes com que todos sonham são os que raramente se cometem. Tão-pouco ocorrem belos suicídios com frequência que conte na estatística. Sobretudo no sul. Não há ribeiras com corrente bastante onde a mulher vá deslizando à sombra dos salgueiros com as palmas das mãos por sobre a água e as flores espalhadas no vestido. Sendo muito amarelas as paisagens, têm mais de veneno do que de faca. Os venenos não fazem bons cadáveres. Alguns acabam a escarvar a terra, como se houvesse uma linguagem na toxina e ela os mandasse abrir a própria cova. Há os que se arremessam para o largo, procurando água onde ela não existe, ardendo tanto pelo interior que o inferno se confirma ainda antes de eles terem morrido em absoluto. São vistosos, porém dissuasores, estes que continuam a espumar, sujando os panos com que os recobriram. Mas acontece que no sul ninguém se mata com veneno. A gente enforca-se.»

Mas como acabamos de ver há uma certa ambiguidade em relação à identidade do narrador: este poderá ser tanto forasteiro que se encontra a observar ou estudar a população local, como também a protagonista da história: a figura alegórica e personificada —  ginomorfizada —  da Morte. Conhecendo a obra de Hélia Correia e as influências literárias que inspiram a sua veia artística, inclinar-me-ia, ao escolher olhar o texto da perspectiva literária ao invés da perspectiva das ciências sociais, para esta segunda hipótese.

No excerto que acabámos de citar podem descortinar-s algumas particularidades interessantes, tanto do ponto de vista da narratologia e da Análise do Discurso (Rabatel, A., 2004 a) e b), 2009 e, ainda, 2013), como do ponto ponto de vista da Literatura. Em relação à questão da narratologia, é possível identificar várias estratégias de apagamento enunciativo num narrador homodiegético, onde se evidencia a marca de diluição do Eu numa colectividade, patente no último enunciado do mesmo “A gente enforca-se” . Há , nesta frase, um apagamento da subjectividade a ocorrer em simultâneo com a diluição de um Eu no todo que é o objecto do discurso: a forma como morrem os habitantes daquelas paragens.

Ainda no mesmo excerto, vemos o narrador aludir ironicamente aos suicídios praticados naquela região. Estes são classificados à parte do imaginário colectivo, ou dos estereótipos mais frequentes: os “épicos” e os “românticos” que nos chegam por via do cânone literário anglófono, onde é possível identificar, por exemplo, a alusão à figura da shakespeariana de Ophelia (Hamlet), ou mesmo ao trágico fim da escritora modernista Virginia Woolf, figuras cujo fim está ligado ao elemento aquático. Os suicídios das gentes que povoam o cenário deste conto estão ligados ao elemento terra e ao fogo de um sol inclemente. O narrador aposta numa apresentação contrastiva das formas de suicídio, ligando-as simultaneamente à geografia, ao clima e à cultura. Como contraponto da luz sombria e da humidade britânica, o narrador coloca-nos em face ao cenário agreste, seco e abrasador do sol Alentejano; não nas aprazíveis praias do litoral mas no interior, quase desértico, onde os suicídios dos habitantes locais não se prestam às tonalidades escuras, sombrias, romântico-góticas dos céus das ilhas britânicas. Pelo contrário, sob o olhar do narrador heliano, os suicídios, debaixo da crueza da luz da Europa Mediterrânica, da impiedade de um sol inclemente, que no pico do Verão a aproximam da secura do deserto marroquino, adquirem as nuances calcinadas das penas do inferno católico, descrito na obra de Dante. Alinão há lugar para a beleza ou a sublimidade na Morte. A crueza  e o realismo destes suicídios, inscreve-se na prosa  de Hélia Correia, sendo intensificados pela polarização efectuada por meio de estruturas frásicas contrastivas. A técnica do contraponto enfatiza estas variações extremas de luminosidade a que se junta a presença de fortes sensações térmicas a opor Norte e Sul não apenas na Europa mas mesmo dentro do território português. A selecção, por parte do narrador, destas estratégias discursivas resulta num texto de fortemente polifónico.

O protagonista, que neste conto é o assassino está identificado como sendo, um destes homens do sul. Mas aqui não há propriamente empatia do narrador nem com o assassino nem com a vítima. Há apenas a dissecação das almas. Como convém a um narrador que está de fora da cena, acima dos mortais: omnisciente e omnipresente no cenário, como a própria Morte.
O assassino, na infância, já torturava animais. O pai fora um homem que, pressionado pelas convenções sociais, “casou cedo para dar bom termo a uma gravidez”. Aqui há algo que neste narrador vai de encontro ao narrador do conto de Dulce Maria Cardoso: o desdobramento de perspectivas, onde o narrador descreve o processo de formação da personalidade, quer do assassino quer da vítima, ou melhor, da evolução da situação que leva ao momento presente. E, em ambos os casos, quer o suposto assassino de "A Desaparecida", quer o assassino de facto de "Ao seu Alcance", têm uma relação de parentesco com a vítima. Mas, no conto de Hélia Correia, o narrador foca-se bastante mais no processo de construção da personalidade do assassino, que se desenvolve por acção do tempo e em interacção com o Outro (e aqui inclui-se tanto a relação pessoal com as vítimas, como a relação com a comunidade, a cultura em que se insere e, até, a geografia) a que assistem todos os membros da comunidade sem qualquer possibilidade de interromper o processo ou modificá-lo. A fatalidade é, pois, outro elemento do gótico na literatura que está fortemente inscrita neste conto, logo desde o início, e que vai tomando forma, dominando a cena, como um cancro de especial malignidade:

«Algo deixava os seus sinais no quarto, uma existência desprovida de corpo ou duração, algo dotado\do talento de espera».

Também a personalidade assassina ou, se quisermos, o impulso para causar a morte em outrem, seja ele animal ou pessoa, surge aqui como algo que vai sendo socialmente cultivado, dentro do processo de enculturação e socialização da criança, onde até o homem mais velho, transformado mais tarde em vítima, tem inclusive a esperança, de que o filho desenvolva o mesmo impulso, estimulando-lhe o prazer em causar a morte a outro ser vivo, como fazem as feras: aquilo a que chama de “talento para caçar”. A ironia do conto reside no paradoxo de a vítima alimentar, sem disso ter consciência, o monstro, que mais tarde a destruirá. Um processo, que alegoricamente pretende representar uma sociedade cruel e irracionalmente autofágica.

O narrador-testemunha de "Ao seu Alcance", adopta a postura de um antropólogo, como se descrevesse aquela comunidade no seu diário de campo e dela fizesse seu objecto de estudo para encontrar na secura do clima, no isolamento, na solidão, na baixíssima densidade populacional, numa paisagem desoladora e infernal, a explicação para este tipo de comportamento: a procura da Morte para os infelizes é o sucedâneo da procura do amor, o qual os habitantes daquela localidade não são treinados a procurar, nem a cultivar. Sobretudo os homens, pois sempre que se referem ao corpo feminino, fazem-no mencionando-o como um mero veículo de satisfação das próprias necessidades, sejam elas, sexuais, reprodutivas ou de qualquer outro tipo. Veja-se aqui a reprodução de um discurso ouvido num café local pelo narrador:

« — Fazem falta as amantes à antiga. Nas putas de hoje não se pode confiar — diziam. E puxavam a saliva para a frente da boca. Mas cuspir não era permitido nos cafés. No vazio que Deus tinha deixado, assentava a censura dos parceiros. E eram postos na rua como os pais no seu tempo de pobres. Juntavam-se na sombra para fumar. Espalhavam uma espécie de tristeza, um fundamento para a lentidão.

Também o homem deste conto demorava. Temia começar uma corrida como uma bala teme o disparo.»

O ambiente social e cultural é o factor determinante na construção do pensamento e comportamento exterior que compõe o ethos do protagonista parricida. O mesmo ethos (Goffman, 1973) do predador, que vai aprimorando a arte de matar, até à última instância, tornando-se ele próprio uma máquina de morte. Servindo a Morte e tornando-se sua amante. A Morte, aqui usada como alegoria, toma o lugar de mulher amada, e o assassino apaixona-se por ela, pois esta desperta-lhe um prazer indescritível, que nenhuma mulher lhe poderá proporcionar e em tudo semelhante ao prazer sexual: o exercício do poder absoluto de tirar a vida a outrem. A Morte, surge-lhe, pois, antropomorfizada, ou melhor, ginomorfizada. E sedutora, como a própria serpente no Paraíso, no livro do Genesis. No dia em que comete o primeiro assassinato, o parricídio, o  assassino apaixona-se irremediavelmente por ela, tal como Ela havia planeado:

«- Amas-me há muito tempo e eu bem o sei. Pensaste sempre em mim.»

Por fim, o cenário onde é consumado o crime é de degradação e decadência física a espelhar, também, a decadência espiritual da vítima, vergada pelo cansaço, pela velhice e pela doença. A expressão de desalento, que se reflecte no desleixo em relação à casa, dá a entender que, em parte, já decidira, por si, pôr termo à vida. A tensão psicológica aumenta ao máximo com a expressão da atitude de angústia manifesta nos cães, que sentem a presença sobrenatural da morte, uma presença espectral, imaterial que os humanos são incapazes de percepcionar:

«Avistava-se a casa numa curva, uma casa em que as últimas demãos de cal já não surtiam efeito. As paredes mostravam o enchimento, as arestas quebravam-se. Aqueles jogos de dissimulação que quase sempre precedem a ruína já se haviam retirado dela: as janelas, turvadas pelas teias, mostravam-se indiferentes ao exterior. Ninguém espreitava através delas, nem sequer o habitante que ficara para trás, porque a sua visão adoecera.

(…)

Parecia ressequida por um sal que caía nos relevos da ruína com a sua reserva esfarelando.»

“O homem deste conto”, como protagonista anónimo, amante da Morte, cometerá o crime perfeito,  no cenário ideal para, no momento exacto, executar um assassinato de forma a que este possa perfeitamente camuflar-se de suicídio. Na parte final do discurso do narrador, encontramos outra vez ecos de Dostoiévski, tal como havíamos visto nos contos de Dulce Maria Cardoso e Gonçalo M. Tavares, a que se junta agora Hélia Correia com uma boa dose de surrealismo de pendor gótico. Há um lado “escuro” nesta escrita de Correia, onde ressoam ecos de Poe, Stoker, Shelley e outros escritores clássicos anglófonos especialistas em histórias de terror gótico.

A perspectiva de Hélia Correia na construção deste conto policial é, pois, simultaneamente clássica, mas ao mesmo tempo inovadora, uma vez que a narrativa, apesar de fortemente imbuída da perspectiva das ciências sociais, nunca deixa que a prosa se perca na secura científica de um qualquer espírito positivista, nem impedir que o teor poético da prosa ocupe o lugar de destaque, num discurso onde se dilui, com notável mestria, a fronteira entre a beleza e o horror.


V —  "A Colina" de Mafalda Ivo Cruz
Photo by Enric Vivez-Rubio para Público

A acção do conto de Mafalda Ivo Cruz, “A Colina”, centra-se à volta do assassinato mais uma criança, desta vez um rapaz. À primeira vista, poderia tratar-se de um argumento para uma típica série televisiva de detectives, pela forma como são apresentadas as personagens logo na primeira cena, numa esquadra de polícia, onde os funcionários se afadigam com interrogatórios aos possíveis suspeitos, testemunhas, descrição do local do crime, estado da vítima, etc.

No entanto, à medida que a trama se vai lentamente desenrolando, vemos que a narrativa não segue à risca a fórmula tradicional, no sentido de reunir provas irrefutáveis acerca da identidade do assassino. O pensamento do inspector que conduz as investigações, o agente Sebastião Gomes, vagueia constantemente por memórias distantes no tempo, reminiscências do próprio passado, ao mesmo tempo que cria estranhas (e muito pouco coerentes) associações com o presente e, em particular, com o caso que tem entre mãos para resolver.

O ethos do principal suspeito, Luís Macário, e da suposta cúmplice, D. Custódia, são decisivos para influenciar o curso das investigações e, tal como acontece à personagem Mersault de O Estrangeiro de Albert Camus, uma das personagens será detida para investigações com base apenas em indícios ou, no melhor dos casos, em provas puramente circunstanciais.

A caracterização de Luís Macário, feita pelo narrador que descreve o suspeito através do olhar do Inspector Gomes, é nitidamente desfavorável àquele, o que pressupõe desde logo um pré-julgamento, por parte do inspector, muito antes do apuramento dos factos. O tom da entrevista na esquadra é também abertamente hostil e intimidante, como se vê no excerto que se segue. Note-se o adjectivo que destaco a itálico, o qual pressupõe um juízo de valor para a pessoa que se encontra a avaliar o seu comportamento:

«Pelas duas da tarde, Luís Macário da Conceição, sentou-se na cadeira onde tinha estado a mãe da criança. Era um homem calvo, pequeno e curvado. Os olhos claros eram desagradáveis.»

A forma como o inspector vê a testemunha de defesa, a Dona Custódia, a lavadeira que cuida da roupa de Luís Macário, também não é benevolente: a desconfiança que despoleta, mediante o “olhar de esperteza” que o inspector julga detectar na mulher, parece-lhe deixar entrever um certo calculismo táctico e algum cinismo, deixam-no desconfiado face a uma possível colaboração entre esta e o suspeito principal, a fim de lhe arranjar um álibi.

A resolução do caso é inconclusiva, apesar de se efectuar uma detenção. O conto de Mafalda Ivo Cruz termina com demasiadas ambiguidades e nenhuma certeza que ligue, de forma inequívoca, o principal suspeito à morte da vítima. Esta mesma ambiguidade, traduz-se num final aberto a um leque infinito de possibilidades,  e apresenta-se sublinhada pela equidistância do narrador em relação a todas as personagens, incluindo detectives, suspeitos e possíveis criminosos. A simpatia do narrador cinge-se apenas à fatalidade que se inscreve no texto face ao ambiente de extrema crueldade, solidão e miséria com que se trava o destino da criança vítima do crime e ao passado traumático que envolve a infância do próprio inspector. A intriga policial, aqui, progride com base na total subjectividade, algo arbitrária, proveniente da intuição e da reminiscência das experiências negativas do passado longínquo do chefe da esquadra do inspector Sebastião Gomes, e da reconstrução mental que este faz do crime e da identidade de um possível assassino.



VI —  "São Jerónimo e o Leão" de Mário Cláudio
Photo:  Artur Machado para Diário de Notícias 


“São Jerónimo e o Leão” é o conto de Mário Cláudio que integra esta colectânea. O título, apesar de estabelecer uma imediata ligação inter-textual com as lendas que remontam aos primórdios do Cristianismo, torna-se de certa forma enganador uma vez que a trama desta história se situa em pleno século XX, jogando o autor com a modalização temporal reflectida num ambiente social conservador, a casa da Senhora Dona Mariana Filipa que, na abertura do conto, se apresenta em estado agonizante e deseja legar ao filho um valioso tesouro de família.

O conto gira à volta de dois crimes, cuja proximidade se torna suspeita por parecer ligar a vítima do primeiro à condição de principal suspeito do segundo: um furto, acompanhado de burla, e um assassínio, gravitam à volta um do outro como um sistema solar binário. Melhor dizendo, o roubo de uma obra de arte, relacionada com a temática da hagiografia cristã, o quadro de São Jerónimo e o Leão (a que se refere o título), está no centro desta trama policial a que se liga depois a suspeita de um crime de homicídio. O quadro é herdado por Cristóvão de Ataíde, filho da Senhora Dona Mariana Filipa de Ataíde. O quadro desaparecerá despois misteriosamente ou será feito desaparecer por um muito pouco honesto comerciante de arte, amigo do herdeiro.

Na verdade, a explicação para a morte do venal negociante de arte Guilherme Meira de Souza permanecerá sempre numa zona cinzenta, sendo deixada no ar a dúvida sobre se a sua morte será apenas o resultado de uma mera fatalidade ou o produto de um homicídio, havendo pelo menos dois suspeitos com um motivo suficientemente forte para lhe acabar com a vida: a esposa, Maria Carolina, insatisfeita com a relação, e o amigo traído, Cristóvão de Ataíde, o dono do quadro, alvo de burla por parte de Guilherme.

O aspecto mais interessante deste conto não se prende, no entanto, com a resolução do crime, mas antes com a apresentação da diferença entre ethos privado e o ethos público das personagens. A esta questão liga-se, ainda, a imagem que o narrador transmite de si próprio, pela forma como descreve as suas personagens, pois a sua forma de olhar e os outros inscreve-se de forma inequívoca nas escolhas lexicais e nas opções de construção sintáctica que efectua e com as quais vais construindo o seu discurso.  Estas escolhas inscrevem no texto o ponto de vista pessoal do narrador-locutor, expresso através modalidade avaliativa-afectiva, dirigida sobretudo às características físicas, psicológicas ou comportamentais dos diversos actores. Isto resulta num colorido muito particular que é adicionado ao relato, supostamente frio e objectivo de uma investigação criminal, e uma maneira algo cómica de olhar os factos, manifestando gostos, preferências e preconceitos ou juízos a priori de um narrador que é tudo menos imparcial.

Posto isto, torna-se facilmente perceptível a índole conservadora deste narrador cuja forma de olhar os outros, sobretudo as mulheres, é fortemente marcada pela cultura de uma sociedade de estrutura vincadamente patriarcal. O ethos das suas personagens femininas surge, aqui, iluminado por uma luz que lhes é muito pouco favorável. Por exemplo, os defeitos de Graça, a prima de Cristóvão, ou de Maria Carolina, a esposa de Guilherme, são detalhadamente realçados e focalizados para reflectir uma imagem de si que destaca a ambição desmedida, o carácter rapace e a frivolidade como traços principais da personalidade de ambas. Já a mãe de Cristóvão de Ataíde, o protagonista celibatário e misantropo, seu herdeiro universal,  é a figura feminina que aparece retratada de forma mais benevolente. Contudo, apesar de a imagem da matriarca traduzir alguma dignidade, a sua descrição física passa aos leitores a imagem de uma mulher muito pouco cativante, porque quiçá demasiado austera, a viver dentro de um opressivo espartilho de normas sociais. Trata-se de um retrato que não inspira propriamente simpatia, onde por exemplo, o “rosto amarelo” com que é descrita, insinua não apenas uma evidente decadência física (provavelmente relacionado com problemas hepáticos) é conjugado com a utilização da palavra “beiços” ao invés de “lábios”. Trata-se de um nome de conotação pejorativa, que deixa adivinhar a distância emocional do narrador em relação à personagem. Todavia, só mais tarde, praticamente no final da história, será possível confirmar que este narrador não é parente, nem amigo próximo da dona do solar, mas antes parente de um amigo íntimo da casa: o filho do advogado da família. Esta faz a locução no tempo “presente” ao reconstituir um caso, que fora tratado apaixonadamente pelo pai décadas antes, reescrevendo o relato que este fizera quando tratara a causa. O pai, esse sim, fora amigo íntimo da casa, tinha por hábito usar da dramaticidade e eloquência nos seus discursos transformando os seus casos jurídicos um enredo de folhetim, a fim de emocionar a audiência.

A sobrinha de Dona Mariana Filipa, Graça, a prima de Cristóvão, ficará com a imagem de mulher fatal, como atesta a forma como é descrito o seu vestuário e aspecto exterior a projectar um ethos predador, confirmado depois no desfecho da história:

«Foi então que a sobrinha, Graça, endireitando-se nos sapatos de verniz, de tacão muito alto, cravou as longuíssimas unhas vermelhas no braço da prima Rosário, sacudiu a basta cabeleira loura, e perguntou, audivelmente, ‘Vamos lá saber, e as jóias da velha?’».

À esposa do Almirante Guilherme Meira de Souza, Maria Carolina, cabe-lhe representar o papel da mulher frívola, que vive de aparências e ostentação. A relação com o marido é de tal modo desapaixonada e fria, que Maria Carolina poderia fazer cair em si as suspeitas do assassinato do cônjuge, apenas com base num ethos prévio onde predomina a imagem de ausência total de afectividade no casamento, acompanhada por uma boa dose de desprezo pelo homem com quem está formalmente casada. A segunda cena do conto onde participa, uma prolepse, a reacção de Maria Carolina ao encontrar o corpo sem vida do marido (testemunhada por Cristóvão, que observa escondido a um canto da sala), não deixa margem para dúvidas: a atitude teatral, patente nos gestos e expressão facial, leva o leitor a suspeitar tratar-se ela de uma das principais suspeitas ou, pelo menos, cúmplice do crime. O desenrolar da trama afasta no entanto o olhar da figura da viúva, focalizando-se antes na relação do falecido com Cristóvão de Ataíde, que naquele momento a observa, escondido a um canto da sala. Este será talvez um dos motivos pelos quais, possivelmente, o conto não apresentará no final a solução inequívoca para o crime.

«Maria Carolina (…) topou com esta cena, ao regressar do bridge de quarta-feira e a sua primeira reacção consistiu em olhar a toda a volta, averiguando se alguma peça faltava na colecção, que praticamente revestia as superfícies de pau-santo.

(…) Ela aproximou-se do marido, tocou-lhe ao de leve na nuca com o indicador em riste, e o cadáver resvalou (…). Pelo tempo de um relâmpago, Maria Carolina rejubilou com a sua liberdade, ao achar-se eximida a esse cônjuge incómodo, que a envergonhava pela fama que possuía de senil Casanova…»

A imagem desfavorável projectada por estas duas personagens femininas, a que o narrador se empenha em conferir centralidade, surge em contraponto face à das duas principais personagens masculinas, membros do que se usa chamar de ‘boas famílias’ apesar de estes, entre si, exibirem traços de personalidade opostos. Graça e Carolina são movidas pela ambição: o seu principal objectivo é o de enriquecer, atingindo, em última instância, uma posição de poder e estatuto social. Guilherme e Cristóvão, pelo contrário, têm tudo adquirido pelo nascimento, herança e linhagem. Apesar dos defeitos que os caracterizam (uma certa misantropia em Cristóvão e a tendência para a dissipação de Guilherme) ambos não deixam contudo de captar, de um modo ou de outro, alguma simpatia no leitor: Cristóvão é apresentado como um homem honesto, apesar de não manifestar qualquer interesse explícito pelo sexo feminino, tem a seu favor o impulso de zelar e conservar responsavelmente pelo património familiar; já o o almirante Guilherme André Meira de Souza é mostrado como o típico aristocrata com dificuldades financeiras, esbanjador, ambicioso e sem escrúpulos, mulherengo com tiques de marialvismo, mas é mostrado de forma algo benevolente pelo narrador, onde domina o ethos do sedutor, alegre, sempre bem-disposto e bon-vivant.

O tom utilizado na prosa de Mário Cláudio é sempre pautado pela mais refinada ironia, a adequar-se na perfeição a uma tragicomédia a pender para a sátira, em que o principal objectivo é o de destacar a superficialidade e frivolidade das personagens centrais da trama. Será Cristóvão, sobre quem cairá, num golpe de cínica ironia do destino, a carga de principal suspeito do assassínio do [falso] amigo, em virtude de um conjunto de provas circunstanciais e a despeito de ser a personagem com a imagem imagem mais favorável de toda a trama. A projecção do ethos de maior comicidade acaba contudo por cair, no próprio narrador, em virtude do discurso excessivamente floreado, algo untuoso e ligeiramente maledicente de um solicitador de província, com pretensões literárias.


VII —  "A perdição do Sorriso Cromado" de Ricardo Miguel Gomes

Photo: imagem retirada do arquivo da Visão

 O sétimo conto desta série chama-se “A perdição do Sorriso Cromado” e chega-nos pela pena de um autor que, no campo da Literatura, se nos apresenta quase desconhecido chamado Ricardo Miguel Gomes. Isto porque a sua faceta de escritor se encontra na sombra da sua outra persona artística, a do cineasta Miguel Gomes, o realizador do premiadíssimo filme Tabu e, mais recentemente, de As Mil e uma Noites.

O conto de que aqui falamos pretende ser uma sátira à premissa contida no adágio popular “quem feio ama, bonito lhe parece”, complementada pela deriva do aforismo de Serge Gainsbourg   “A grande vantagem da fealdade/ em relação à beleza é que a fealdade permanece” —, usada como epígrafe, a alertar o leitor para a tónica de um discurso que se afigura pautado pelo cinismo constante do narrador.

A intenção do autor nesta sátira corrosiva à sociedade de consumo e à cultura da imagem é a de salientar a vulgaridade, a pequenez, a mediocridade de determinados tipos sociais que preferem trilhar a própria vida pelo caminho da superficialidade e da aparência de sucesso. "A Perdição do Sorriso Cromado" é uma história onde o kitsch se sobrepõe a tudo o mais (na verdade as personagens constituem, todas elas, uma galeria de cromos, caricaturas levadas ao cúmulo do exagero),  não deixando espaço para seja o que for que se afaste desta pequenez para  se dirigir a algo que se eleve um milímetro que seja em direcção ao sublime. O “sorriso cromado", que aparece logo no título, é a expressão utilizada pelo narrador que deixa entrever o grotesco, de uma aparência que o é em perseguição da capacidade de deslumbrar. O sorriso de Anabela é um sorriso “cromado” porque ornado de um aparelho ortodôntico, com vista a aperfeiçoar um sorriso que se deseja ideal, como aparece nos media. A protagonista ostenta um sorriso um sorriso que não é belo, ainda, mas está a caminho de sê-lo sacrificando o aspecto presente, em perseguição de uma hipotética, possível e se calhar até provável beleza (e felicidade) futura. A imagem até ao momento da morte, fora sacrificada face à expectativa de um ideal de perfeição a atingir num tempo que, à data, ainda não se concretizara, deixando para a posteridade, a imagem física para sempre aprisionada no ridículo de um sorriso metalizado, cromado.

Tojó, o protagonista masculino persegue também um ideal de beleza mediática, indispensável à sua profissão (é modelo profissional), enquanto queima tempo infinito no ginásio e inunda o corpo de suplementos vitamínicos. Mas nem TóJó nem Anabela possuem um ideal mais elevado que isso mesmo: beleza e sucesso que se podem exibir. Duas metas que têm de perseguir a todo o custo, não para usufruto próprio mas para exibir à comunidade, pretendendo elevar-se acima desta por essa via. A história deste crime gira, toda ela, à volta do culto do sucesso. Este é desejável apenas para valorização de um ethos colectivo, a imagem pública tanto de TóJó como de Anabela.

A evolução da trama aposta na alternância de vozes, a qual confere dinamismo à narrativa e permite simultaneamente comparar a toada discursiva, cínica mas distanciada, do narrador com o tom violento, passional e narcisista de TóJó, ou o tom pio de uma testemunha, reduzida a um único traço fisionómico, “um bigode fininho” (e assim menorizada pelo narrador através de um golpe kung-fu verbal, knock out metonímico). Esta testemunha ocular que surge no texto identificada apenas como um "bigode", sendo citada directamente dentro da fala do narrador e incorporada na sua ácida ironia:

«A morte é indigna quando nos apanha desprevenidos. Mas não para a Anabela, cujo cadáver ainda quente se encontrava engolfado numa poça de sangue, entre um vidrão imundo e a carcaça carbonizada de um Seat Ibiza. O corpo estava voltado de barriga para cima e um inusitado sorriso parecia afivelado no seu rosto já macilento. A Anabela parecia zombar de todo aquele infortúnio. O aparelho nos dentes tremeluzia como uma provocação à própria morte; como uma flâmula de vida que teimava em não se apagar. “Foi a queda de um anjo”, exclamou um bigode fininho que oscilava ao ritmo ruminante de um palito espetado ao canto da boca.»

O narrador utiliza também a metonímia para caracterizar todas as personagens do conto, exceptuando claro está, TóJó e Anabela. Na verdade, nenhuma das personagens, sejam elas protagonistas, secundárias ou figurantes, é caracterizada de forma positiva, o que só faz realçar o niilismo do locutor-narrador tanto na forma como conduz a narrativa como no teor do discurso que vai debitando.

Embutido na locução deste narrador, está também o discurso despeitado do próprio TóJó, citado na primeira pessoa. Nesta passagem, o assassino esclarece o móbil do crime, o teor da sua relação com a vítima, desvelando ainda a forma como se vê a si próprio:

«Amava-te tanto que te ofereci a própria morte. Não sei o que te deu para me tentares expulsar lá de casa, depois da noite que passamos juntos. Estávamos tão bem: enroscadinhos no teu edredon vermelho, com os nossos pés aquecidos pelos carapins de lã que a tua mãe fez…Como fui confiar numa mulher adulta, com o sorriso cromado de uma adolescente? Ainda me arranhaste, ó parva, porque te tentei beijar antes de caíres. De nada serviu estrebuchares… Foi bem feito, sabes?! Se tivesses marquise, não terias caído tão facilmente!»

TóJó é, pois, o protótipo do assassino irascível e simultaneamente do homem banal que se julga excepcional.

O autor cai, contudo, no erro de colocar o narrador não apenas a usar do mesmo tipo de discurso e a confirmar a o ponto de vista das restantes personagens: da banalidade  do quotidiano do casal, a pobreza de espírito. Na verdade, o conto ganharia profundidade com a criação de um maior contraste entre o discurso do assassino, narcisista e megalómano, e o do narrador-testemunha, caso se apresentasse mais frio, ou fleumático, e sem ser marcado pelo realismo maldizente, que poderia, por exemplo, ser apanágio da testemunha ocular do "bigode fininho". Mas neste formato, o narrador quase não se distingue das restantes personagens secundárias que criticam os protagonistas. Consequentemente, a imagem que o narrador transmite de si mesmo é, também, a de um homem com uma opinião muito pouco benevolente da sociedade: trata-se de uma voz de certa forma contida, de olhar crítico e omnisciente, pois conhece com detalhe todas as personagens, as suas aspirações, desejos e, sobretudo, as suas fraquezas. TóJó, no entanto, destaca-se, de todas as outras personagens não pela banalidade, mas pela presença activa da maldade e de um incontinente narcisismo. Esta é uma narrativa de escárnio e maldizer que bordeja o conceito do mal de Hannah Arendt. Nada mau para um escritor que faz do cinema a sua actividade principal, apesar de  ainda tão discreto em termos de produção literária.



VIII —  "Dom Quixote" de Rui Zink
Photo: Imagem Retirada do site da Planeta Editora


Rui Zink optou, tal como Ricardo Miguel Gomes, pelo registo paródico. Ambos escolheram a sátira sim, mas mais do que a caricatura a determinados tipos sociais como fazem Mário Cláudio e, como veremos mais adiante, Valter Hugo Mãe, Ricardo Miguel Gomes e Rui Zink preferem, dentro do género cómico, a teatralidade da farsa. Mas enquanto que o discurso do narrador de Miguel Gomes sugere muito mais a voz em off de uma narrativa para cinema, a voz narrativa neste conto de Rui Zink sugere muito mais o imediatismo de quem presta um depoimento em tempo real, adaptando-se mais facilmente às características de um palco cujo cenário seria uma audiência num tribunal.

O conto sinaliza, logo a partir do título, “Dom Quixote”, uma relação dialógica e inter-textual com o romance homónimo de Miguel de Cervantes. Rui Zink escolhe , no entanto, um caminho bem diverso do de Francisco José Viegas, que também parte daquele clássico da literatura castelhana para construir o seu conto para este livro. A epígrafe de Jorge Luís Borges que abre o conto de Zink não deixa margem para dúvidas quanto ao caminho escolhido para o desenvolvimento da narrativa e da forma como a sua personagem se coloca em relação ao mundo em que vive:

No quería componer outro Quijote — lo cual es fácil — sino el Quijote.

A forma como é edificada esta relação dialógica fica, pois, clara logo nos primeiros parágrafos: Rui Zink serve-se do seu protagonista, cuja vaidade extrema o faz cair no ridículo, para tecer uma ácida crítica aos pseudo-dom-quixotes modernos, sempre à procura de holofotes e protagonismo mediático, mal-disfarçando o hiper-desenvolvimento do próprio ego o qual, por mais que tente, não consegue esconder-se sob a esburacada capa de falso altruísmo:

«Não se lembra de mim? Por acaso, pensei…Não, não estou desapontado. Só que, até há bem pouco tempo, eu era conhecido como activista em causas cívicas e por isso aparecia na televisão.

A solidariedade com os náufragos marroquinos, não se recorda? Eu. A denúncia do plano estatal de humilhar metodicamente os idosos a fim de lhes provocar enfartes e, destarte, sinistra e “atempadamente” (sic) reduzir a despesa pública com as pensões e reformas? Eu. A solidariedade com os cartunistas eslovenos? Eu. Quer dizer, não fui só eu, houve mais gente (há sempre mais gente), mas eu fui o rosto mais visível das campanhas, sobretudo desta última…».

Rui Zink serve-se, neste conto, de formas de interacção verbal  das quais o leitor pode facilmente deduzir um diálogo implícito, mas ao qual só temos acesso à produção verbal de uma das partes, o locutor-narrador. Cabe-nos pois inferir, nas entrelinhas, as falas do respectivo interlocutor (esta poderia ser uma conversa ao telefone ou uma video-chamada via skype, com auscultadores, o que permitiria a um ouvinte, que não a pessoa a quem se destina o discurso, ouvir parte substancial da conversa e adivinhar as falas da pessoa com que está a interagir).

As estratégias discursivas deste locutor,  fazem-no assemelhar-se a uma personagem de uma ópera buffa, pelo constante recurso ao nonsense, ao absurdo, estratégias essas que surgem no conto habilmente conjugadas com a estrutura do conto policial. O pano fundo da intriga é constituído, por uma trama que tem como elemento central um crime, neste caso, um homicídio. Um conto policial com este formato de aparente monólogo (que na realidade não é, pois a reacção do interlocutor encontra-se elidida) pode perfeitamente ser levado à cena e facilmente dramatizado.

A história inicia-se com a fórmula com que, em regra, é costume abrir-se uma história de detectives, através de uma analepse, parecendo quase inspirada na cena de um melodrama negro dos clássicos de Hollywood, ou então um dos primeiros filmes da série James Bond, outro vector de inter-textualidade no conto:

«O estanho caso do espião russo começou na manhã em que Nélida entrou no meu escritório».

A primeira frase remete para as histórias de espionagem ou de crime clássicas, a iniciar com uma entrada dramática e triunfal de uma figura feminina no gabinete do protagonista, a insinuar também o prelúdio de um romance, onde este representará o papel de "cavaleiro andante" dos tempos modernos para salvar a dama em apuros. Há aqui uma ligação directa à personagem cervantina do clássico da Literatura do século XVI, para derivar logo a seguir para o modelo da intriga de espionagem e cair nas divagações de um decadente Dom Quixote moderno.

Mas quem é este ‘Dom Quixote’ dos nossos tempos? Trata-se de um professor universitário (tal como o autor do conto, de que esta personagem parece ser um seu alter-ego, uma espécie de gémeo mau), que se encontra a prestar um depoimento na primeira pessoa, a fim de esclarecer as circunstâncias de um homicídio do qual é, ele próprio, o principal suspeito. O discurso que vai debitando adquire uma tonalidade situada, algures, entre o registo naïf e o cínico, lembrando não tanto um Dom Quixote cervantino mas antes um patético Dom Juan, cuja verve se apresenta sob a forma de um pastiche de uma personagem da ópera mozartiana. Na verdade, este é um sedutor tipicamente fanfarrão, que faz de tudo para projectar a imagem do homem que gostaria de ser, ou melhor dizendo, do estereótipo daquilo que pensa julga o modelo ideal de sedutor omnipresente no imaginário feminino.

Este tipo de personagem caricatural é bastante frequente na ficção de Rui Zink. Trata-se, aliás de uma caricatura,  a qual o autor gosta muitas vezes de corporalizar, dando-lhe vida ao colocar a máscara da sua própria "criatura",  nas suas apresentações públicas e debates literários. Contudo, no conto, a personagem, ao contrário do seu criador, não consegue manter o seu ego secreto e privado por muito tempo: vai-se traindo aos poucos e, gradualmente, deixa a descoberto as díades ou tríades amorosas, em que se envolve e as quais gravitam à volta e do homicídio do qual é suspeito. Esta personagem que tenta vestir a máscara de Dom Quixote é um ser que se mostra escandalosamente confiante, a despeito da gravidade da situação que está a enfrentar. O seu discurso com o interlocutor, o juiz anónimo que o interroga, assume os contornos de uma conversa de café, na qual tomam parte os típicos coloquialismos da oralidade, chegando até mesmo a aludir a uma conhecida canção de música popular, bastante ridicularizada pela opinião pública pelo seu teor melodramático:

«Não, não fomos para aquela pensão. Fomos para o meu apartamento, pequeno mas livre. O divórcio tem destas vantagens. Elas ficam-nos com a casa, o dinheiro, a custódia dos filhos; nós em compensação ficamos com a liberdade, angustiada, agridoce, perigosa liberdade — mas liberdade à mesma. A maioria dos homens não aguenta, assusta-se, entra em pânico, e casa de novo com a primeira flauzina que lhe faz olhinhos. Eu não. Prezo muito a minha liberdade. E não me posso queixar. Nunca tive problemas quer com a solidão, quer com as mulheres. Além de ter a sorte de possuir aquilo que as mulheres mais procuram num homem.

Carisma.

Até mulheres novas. É engraçado como as raparigas não se importam de ir com homens mais velhos, desde que tenhamos uma personalidade forte. O corpo não é a primeira preocupação delas, Deus as abençoe, senão eu estava tramado. Carisma. Uma personalidade magnética é mais benfazeja a um homem que a mais sedutora das loções. Acredite no que lhe digo, que falo por experiência própria. Um bom after-shave é apenas química, já o carisma é magia pura.

Ná, o meu problema não é encontrar mulheres; o meu problema é ver-me livre delas, porque querem todas agarrar-nos; mesmo aquelas que não o querem acham que é seu dever — por obediência a uma qualquer ordem atávica do código genético — castrarem o gato selvagem que há em nós.»


Porém, alguns parágrafos antes deste último excerto, percebe-se que o interlocutor ainda tenta controlar o depoente e fazer com que este não se desvie do tema central, através de várias tentativas [para nós inaudíveis] de lhe normalizar o discurso, a fim de que este não se torne demasiado familiar, antes de desistir por completo de o fazer:

«Eu sei, estou a desviar-me. É estranho, quando uma pessoa fala em desejo dizem sempre que estamos a desviar-nos. E no entanto o desejo é (pode ser) pode ser a força mais revolucionária do mundo. Os Beatles diziam que era o amor. Eu acho que é o desejo.

***

Estou a desviar-me. Ou não, não estou a desviar-me.

O que fiz? Apenas isto: inclinei-me para a beijar…e depois retraí-me. Ponha-se na minha posição: o senhor beijava-a? Afinal, ela poderia estar apenas a pedir-me ajuda, ajuda para ela e para o — apesar de ela o negar — namorado.»

O narrador nunca deixa de exibir, ao longo do conto, uma personalidade que não deixa dúvidas, tanto em relação ao seu narcisismo quanto à sua (in)capacidade para a autocrítica. Sobretudo por manter, durante todo o conto, a mesma atitude familiar com quem o interroga, pautada por uma falsa jovialidade no discurso, enquanto se esforça por ignorar que aquela é uma relação institucional onde há alguém que detém a autoridade (o juiz, que é o interlocutor ou alocutário) e que é o réu, ele próprio, quem está sob escrutínio. Tudo isto são detalhes discursivos que levam a crer que é ele próprio culpado do crime em questão. A total falta de empatia com as pessoas com quem se cruza e cuja vidas são destruídas pelo seu egoísmo não deixa de reforçar esta hipótese, ao projectar um discurso e imagem de si situados onde domina o tom de falsa ingenuidade, se não mesmo de cinismo, como se vê no excerto que se segue:

«Pois é. Dom Quixote não dá golpes às mulheres a quem serve. Pelo contrário, ajuda-as, é galante, toma o congresso carnal como o selo mesmo de um compromisso cavalheiresco — o de servir a dama em apuros.

O senhor poderá dizer que Dom Quixote não dormia com mulheres. Bom, eu só digo que os tempos mudam. Não nos vamos preocupar com detalhes, até porque não se pode esperar que um homem do século XXI seja tão ingénuo como um herói imaginário do século XVII.»

Na verdade há um enorme abismo que separa este Dom Quixote do idealismo do Caballero de la Triste Figura de Cervantes, uma vez que o protagonista deste conto não mede esforços para desviar as atenções da investigação da sua própria pessoa no tocante à suspeita do crime, enquanto procede à a objectificação total e à demonização de ambas as figuras femininas da história, no sentido de lançar as suspeitas do crime para quem está mais próximo.

Uma história hilariante que, sob a forma de farsa, poderia perfeitamente ser levada a cena pela capacidade de captação das atenções de uma audiência apelando à emotividade dos interlocutores.


IX — "o criminoso portuguesinho" de valter hugo mãe

Photo: Adriano Miranda para Público

E, por fim, chegámos ao último texto desta publicação, com o conto de Valter Hugo Mãe. Trata-se de um conto longo, de quase trinta páginas, que goza da particularidade de ser a trama mais bem construída desta pequena colecção de contos policiais, dentro do registo cómico.

“o criminoso portuguesinho” é uma história onde predomina a ideia de que os crimes a sério — como um homicídio  qualificado— são sempre perpetrados por alguém que nunca chega a ter a mentalidade de um grande criminoso , como seria o caso de um autor de um homicídio premeditado, planeado meticulosamente e motivado pelo sentimento do puro ódio ou da inveja. Não, o criminoso escolhido por Valter Hugo Mãe para um conto deste género é um criminoso ridículo, risível, porque só consegue matar por acidente ou por manipulação alheia: ele é apenas uma pequena peça no meio de uma complexa engrenagem e só comete o crime porque convergem, num determinado tempo e lugar, um conjunto de circunstâncias que escapam ao seu controlo. Trata-se de um estereótipo que tem por base uma ideia fixada no imaginário colectivo de que o povo português é de “brandos costumes”, largamente difundida no Estado Novo, e que ainda vai persistindo até à época recente. Uma noção que, nos últimos anos, começa gradualmente a ser desconstruída e que Valter Hugo Mãe começa a atacar nas suas fundações neste conto.

O enredo consiste num emaranhado de pequenos delitos, como o roubo de um quadro, o furto de tecidos de um armazém, ou a descoberta de insignificantes e sórdidos pecadilhos como o adultério de Dona Mariete, a proprietária da “pensão cinco”. Todos estes delitos e pequenos crimes circulam à volta de um assassínio. A investigação deste crime é encarregue a uma estranha dupla de detectives cujas interacções verbais, durante as diligências de trabalho, se tornam quase tão hilariantes quanto os sketches da série clássica Laurel e Hardy. A dupla é formada por um inspector, convencional, autoritário e pouco imaginativo, fervoroso seguidor de todos os trâmites processuais e pelo seu brilhante, hiper-informado, criativo e…insuportavelmente pedante jovem assistente, o qual nutre uma paixão exacerbada por artes plásticas, chamado Narciso. Este exibe despudoradamente uma imagem de si toda ela assente na presunção e na vaidade. O jovem detective assume uma atitude impertinente aos olhos do chefe, sobretudo por evidenciar a ignorância deste em público, o que muito o irrita. O inspector está a ser constantemente incomodado com as (in)oportunas intervenções de Narciso, que se lhe afiguram quase sempre como uma afronta, com vista a minar-lhe a autoridade.

Já no aspecto narratológico, o conto abre com uma frase que se apresenta como um acto de confirmação, relativo à ocorrência de um roubo, num depoimento que faz parte do relatório de investigação policial que dá forma ao conto. A locução do narrador compõe-se de um discurso testemunhal, que pode ser contado tanto em primeira mão como na transcrição feita pelo funcionário que vai compondo o relatório a constar do respectivo processo. De qualquer das formas, trata-se de uma perspectiva que segue de perto toda a investigação, ao longo de todas as suas etapas. O narrador, todavia, debita o discurso sempre sem participar na história ou sequer interagir directamente com as personagens, não contribuindo para a solução o mistério. No entanto, demonstra conhecer de forma detalhada o fio do pensamento e as emoções de ambos os investigadores policiais ao citá-los inúmeras vezes, quer em discurso directo quer em discurso indirecto livre.

«sim, desaparecera um quadro da galeria nuno sacramento em aveiro, mas esse não era o crime em causa. o assistente perguntava, algo de joana rêgo, do duarte vitória, o inspector respondia, nada disso, homem, não é nada disso, que nos interessa. o outro retorquia, mário vitória, parecem mas não são irmãos, o mário e o duarte, está a entender. o inspecto perdia a paciência e pedia ao senhor nuno sacramento que olhasse para a fotografia que lhe colocava diante. reconhece este indivíduo, perguntava, é um quadro de isabel padrão, foi-me roubado há cerca de um ano. sim, volvia o inspector, mas o home, eu pergunto é pelo homem. o assistente punha-se em bicos de pé, muito ansioso e dizia, isabel padrão, uma maravilha. o galerista olhou melhor e respondeu, está morto, não o conheço. parecia que dizia não o conhecer só porque estava morto, como se a resposta pudesse ser diferente caso estivesse vivo. o assistente perscrutava o ar calmo do galerista e já adiantava, uma coisa terrível, três tiros, dois no peito, um na perna. o senhor nuno sacramento voltou a olhar mais de perto, como a dar o seu melhor, e confessou, não sei quem é, lamento. de todo o modo, começou a dizer o assistente, deve estar contente que lhe tenha aparecido o quadro. nessa altura, o inspector fulminou-o com o olhar e gritou-lhe, cale-se narciso, cale-se. não é que o quadro não houvesse de voltar à posse do seu legítimo dono, mas as investigações ficavam difíceis com um assistente insuportável, preocupado com as coisa mais tolas dos factos

A sintaxe escolhida pelo autor para dar voz ao narrador do conto põe em evidência o ritmo frenético do correr do pensamento deste narrador-testemunha, aproximando o seu discurso da oralidade, como acontece no excerto que acabámos de ler. A ausência de maiúsculas no início das frases contribui também para atenuar as pausas, tal como a ausência de aspas nas citações em discurso directo de outros locutores, as quais são substituídas por segmentos entre vírgulas. Todos estes elementos são indicadores de uma voz que está a relatar o discurso de outros locutores em tom monocórdico e a grande velocidade, sem modalizar as diferentes vozes que aparecem num discurso, o qual se apresenta corrido e pronunciado quase sem interrupções, como se estivesse a fazer um relato ao ritmo do correr dos acontecimentos ou a transcrever depoimentos em directo.

No tocante ao conteúdo do discurso, as personagem citadas, quer directamente quer através do discurso indirecto livre, parecem optar por um discurso pautado pelo absurdo, respondendo não àquilo que verdadeiramente interessa ao inspector, mas a assuntos periféricos, a faîts-divers. Esta estratégia discursiva é adoptada, logo na primeira cena, tanto pelo entrevistado, o dono da galeria, como pelo assistente Narciso, apesar de ambos o fazerem com intenções radicalmente diferentes: o galerista tenta desviar a conversa para o tópico dos quadros roubados, evitando o assunto do assassínio e o objecto principal do interrogatório que é o homem assassinado, porque está, antes de tudo, preocupado com a reputação da galeria e com o roubo do quadro; já o assistente, começa por falar de arte, usando o assunto como “isco” na tentativa de atrair o interlocutor para uma armadilha e apanhá-lo em contradição. Narciso é vaidoso, mas também afeito a ardis e insidioso como uma serpente. A sua vaidade provém da convicção inabalável de posse de uma capacidade intelectual superior à da maioria das pessoas em geral e à do seu chefe em particular.

A dicotomia com que é desenvolvida a narrativa baseia-se na oposição das abordagens de investigação levadas a cabo pelos dois agentes. De um lado, o assistente criativo, engenhoso, subtil, opta por deixar o suspeito à vontade, à espera que se traia; do outro lado, o inspector, agarra-se aos procedimentos clássicos, sem deixar muitas vezes de se mostrar algo boçal, mas ainda assim, prudente, sem infringir as normas. Narciso, no entanto, apesar do apreço manifesto por detalhes aparentemente insignificantes, sempre que se julga na posse da verdade, deixa-se levar pela soberba que o leva a manifestar comportamentos imprudentes, na ânsia de se antecipar ao chefe para depois reclamar a vitória para si:

« O desprezo era grande e a confusão estava desfeita, mas tanta coisa parecia faltar no emaranhado de referências que durante todo o dia se foi desenrolando; o assistente narciso estava calmo, demasiado calmo perante o assassino que, afinal, não lhe provocava ódio algum e vontade nenhuma de o ferrar, como um bom cão de caça faz, nem que seja para marcar a sua vítima e vangloriar-se. Nada. O assistente narciso afastou-se um pouco e teve a sensação de que estava a fazer tudo errado.»

São de facto os dois detectives as personagens que mais despoletam a hilaridade no leitor ao longo do o desenrolar da acção, não apenas pelas interacções verbais ocorridas entre ambos mas também pelo ridículo em que caem diante dos próprios suspeitos. Exemplo disso é a cena passada no atelier de costura do alfaiate alberto pinheiro, assim como a troca de palavras e linguagem gestual que decorre no átrio da pensão da dona mariete. Esta, inclusive, goza abertamente com ambos, em tom vexatório, quando sugere ao inspector que dê atenção ao assistente enquanto este gesticula e salta, na tentativa de lhe chamar a atenção, comparando-o a um “bailarino”.

O narrador, por sua vez, recorre a um truque para despistar o interlocutor, impedindo que este se antecipe a desvendar a identidade do assassino. E fá-lo jogando com o ethos da personagem feminina que ocupa maior espaço (físico e psicológico) na história: a dona da pensão, a “gorda mariete”. Esta imagem exterior, que a proprietária do estabelecimento (que ao tudo indica será um bordel disfarçado de pensão, com bar de alterne acoplado) exibe é-lhe desfavorável: mariete exibe o ethos de uma mulher vulgar, envelhecida, autoritária, a gerir não só o estabelecimento mas também as pessoas que nele trabalham como sua propriedade. No entanto, a identidade do assassino, revelar-se-á totalmente contrária ao estereótipo  da mulher-proxeneta fixado no imaginário colectivo. Por uma vez, Narciso ao ignorar os detalhes importantes para o processo (talvez por não se relacionarem com o seu temperamento artístico) deixará escapar o autor moral do crime, ficando-se apenas pelo “criminoso portuguesinho” típico, incapaz de praticar um homicídio qualificado, assassino quase que acidental.

O conto de Valter Hugo Mãe escolhido para esta antologia encontra-se, pois, bastante próximo da narrativa do romance “o apocalipse dos trabalhadores”, uma sátira social onde o autor utiliza as figuras femininas socialmente menos valorizadas para ridicularizar a figura do típico “macho ibérico”.


CONCLUSÃO:

Posto isto, podemos concluir que, dos nove contos analisados neste artigo, só dois se podem considerar histórias de detectives, dentro do formato mais tradicional, envolvendo uma equipa de investigação policial no centro de um plot, seguindo uma metodologia de investigação criminal: "A Colina" de Mafalda Ivo Cruz e "o criminoso portuguesinho" de Valter Hugo Mãe. Os restantes são, todos eles, contos policiais sim, mas  narrados de forma atípica, das mais heterodoxas perspectivas, sendo, talvez, o conto de Francisco José Viegas aquele que mais se afasta do paradigma.

De resto, todos eles diferem de tal modo entre si que esta selecção de Sena-Lino constitui o mais colorido patchwork que se poderia imaginar, numa publicação subordinada a este género. Isto tanto no que respeita ao aspecto estrutural como aos aspectos narratológico, discursivo e/ ou literário, com maior ou menor preferência de cada um pela ênfase colocada no teor dramático ou, pelo contrário no humor negro.

Três deles, pelo menos, prestam-se de forma inequívoca a uma adaptação ao cinema: "A Desaparecida" de Dulce Maria Cardoso, "Bucareste-Budapeste; Budapeste-Bucareste" de Gonçalo M. Tavares e "Ao seu Alcance" de Hélia Correia, os quais são, (não) por acaso, os três melhores contos de todo o volume, pela forma como os respectivos narradores vão construindo a narrativa, pela multiplicidade de perspectivas, pelo uso que fazem dos planos (estratégias de aproximação e recuo, oscilando entre visão panorâmica ou detalhista da cena) a pela forma como colocam em off a voz do narrador. Tudo características que se prestam à narrativa cinematográfica.

O conto de Mafalda Ivo Cruz, seria facilmente transformado num episódio de uma série de detectives pouco convencional como Hitckcock Apresenta, com um toque dark de distopia surrealista de séries como Black Mirror ou Westworld pela componente onírica dos devaneios que constantemente assombram o protagonista.

Também numa adaptação a um episódio de uma série televisiva de detectives, embora de estilo mais convencional do que o conto de Mafalda Ivo Cruz, se enquadraria facilmente "o criminoso portuguesinho" de Valter Hugo Mãe, pela brilhante interacção dos dois detectives no centro do plot, os quais se podem facilmente transformar em protagonistas de uma sitcom policial, tingida de humor negro.

Já o humor ácido de Ricardo Miguel Gomes em "A Perdição do Sorriso Cromado" cai perfeitamente no formato de curta-metragem do género "negro", para os amantes do cinema não-convencional de onde provavelmente resultaria um guião com ecos do estilo macabro de David Lynch matizados com a hilaridade dos detalhes do sentido de humor de Emir Kusturika.

Francisco José Viegas com o seu "O Manuscrito de Buenos Aires" sendo o mais atípico de todos os nove contos deste livro, poderia ver a sua história adaptada a um documentário televisivo sobre literatura e viagens; ao passo que"São Jerónimo e o Leão" de Mário Cláudio, com uma história a remeter quase que para uma intriga camiliana, onde todos os elementos (desde os cenários, às forma de se exprimir do narrador, um solicitador de província) apresentam a patine do vintage e da tradição, facilmente veria o seu conto transformado numa mini-série de época situada nos meados do século XX.


Por fim, Rui Zink, o mais coloquial dos escritores da antologia, pela forma como se serve do pastiche a partir do clássico cervantino, aplicando-o à personagem de sua própria autoria, cria uma brilhante farsa, que se converte numa inteligente e mordaz crítica aos tempos modernos, a caber perfeitamente, como já foi mencionado, no formato de representação teatral.



Esta selecção de "Contos Policiais" é o resultado de um conjunto de experiências, de exercícios de escrita em total liberdade criativa, sem necessidade de obediência a nenhuma espécie de ortodoxia formal. E isso é absolutamente refrescante.


Cláudia de Sousa Dias


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